Em 2008, a TVE exibiu um documentário acerca da desordem do nosso mundo, intitulado “A Ordem Criminosa do Mundo”.
Entre outros intervenientes, participaram Eduardo Galeano, escritor latino-americano (morreu em 2015), e Jean Ziegler, professor de Sociologia e antigo relator das Nações Unidas.
Dez anos depois, infelizmente, o documentário continua actual: o mundo mudou, como sabemos. Piorou.
É duro ver como estes dois homens descrevem o mundo, sobretudo porque, para além de terem um discurso que une exemplarmente a forma e o conteúdo, reflectem limpidez na análise que fazem.
Os donos do mundo
“Os verdadeiros donos do mundo hoje são invisíveis. Não estão submetidos a nenhum controlo social, sindical, parlamentar. São homens nas sombras que procuram o governo do mundo. Atrás dos Estados, atrás das organizações internacionais, há um governo oligárquico, de muito poucas pessoas, mas que exercem uma influência e um controlo social sobre a humanidade, como jamais Papa algum, Imperador ou Rei tiveram.” – Jean Ziegler
“O atual sistema universal de poder converteu o mundo num manicómio e num matadouro.” – Eduardo Galeano
A globalização
“No processo de criação do mercado globalizado, da unificação do mundo sob a lei do lucro máximo, um dos tipos de capital emancipou-se: o capital financeiro, virtual e líquido, que toma corpo nas Bolsas e que domina o capital comercial, industrial e o capital social, em todas as suas formas.” – Jean Ziegler
“O capital financeiro percorre o planeta 24 horas por dia com um único objectivo: obter o lucro máximo. A globalização é uma grande mentira. Os donos do grande capital que dirigem o mecanismo da globalização dizem: Vamos criar economias unificadas pelo mundo inteiro e assim todos poderão desfrutar de riqueza e de progresso. O que existe, na verdade, é uma economia de arquipélagos [de riqueza] que a globalização criou.” – Jean Ziegler
“Há três organizações muito poderosas que regulam os acontecimentos económicos: Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio; são os bombeiros piromaníacos. Elas são, fundamentalmente, organizações mercenárias da oligarquia do capital financeiro invisível mundial.” – Jean Ziegler
“Todos os dias neste planeta, segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), 100 mil pessoas morrem de fome ou por causa das suas consequências imediatas. No ano passado, a cada 5 segundos, uma criança com menos de 10 anos morria de fome. Tudo isto acontece num planeta que, segundo a FAO, poderia alimentar 12 biliões de seres humanos [somos 7 biliões], ou seja, quase o dobro da população mundial. Nesta matança quotidiana, não há fatalidade alguma.” – Jean Ziegler
O dicionário
“Hoje às torturas chamam-se “procedimento legal”, à traição chama-se “realismo”, ao oportunismo chama-se “pragmatismo”, ao imperialismo chama-se “globalização” e às vítimas do imperialismo, “países em vias de desenvolvimento”. O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem, ou não sabemos o que dizem” – Eduardo Galeano
[A propósito de Guantánamo] “Não se tortura para obter informações, isso é falso. Tortura-se para semear o medo e aí temos de reconhecer que a tortura é eficaz e, por isso, a tortura é agora objecto de publicidade incessante. A máquina de semear o medo utiliza a tortura para prevenir o delito da dignidade.” – Eduardo Galeano
O medo
“Vivemos na sociedade do medo. Quem não tem medo de perder o emprego, tem medo de não encontrar emprego, o que é um medo semelhante. Espalharam-se pânicos: o pânico de viver, o pânico de ser, o pânico de mudar, o pânico dos demónios que inventam para nos assustar.” – Eduardo Galeano
A emigração
“A Organização Mundial do Comércio assegura, em nome do capital financeiro, a total liberalização de circulação de mercadorias, capitais, patentes e serviços. As pessoas não aparecem no projecto da OMC, são atiradas para as vedações de arame farpado de Ceuta e morrem no Estreito de Gibraltar.”- Jean Ziegler
“Esta invasão dos invadidos, pessoas que do Sul marcham para Norte (o Norte que tantas vezes invadiu o Sul em guerras coloniais e nas guerras que eram coloniais mas diziam que não eram), são emigrantes que deambulam numa peregrinação inútil, procurando casa, trabalho, um destino. Este êxodo trágico dos desamparados é um êxodo de pessoas que aspiram a ser tratadas como o dinheiro. Para o dinheiro não há fronteiras. Os muros altos servem para que os privilegiados possam seguir sendo a minoria que manda e os outros se resignem a ser a maioria que obedece.” – Eduardo Galeano
O que fazer?
“Se hoje eu digo que faz falta uma rebelião, uma revolução, um desmoronamento, uma mudança total desta ordem mortífera e absurda do mundo, simplesmente estou a ser fiel à tradição mais íntima, mais sagrada da nossa civilização ocidental. O nosso dever primordial hoje deve ser reconquistar a mentalidade simbólica e dizer que a ordem mundial, tal como está, é criminosa. Ela é frontalmente contrária aos direitos do homem e aos textos fundacionais das nossas civilizações ocidentais.” – Jean Ziegler
“A primeira coisa que devemos fazer é olhar para a situação de frente e não considerar como normal e natural a destruição, por exemplo, de 36 milhões de pessoas por culpa da fome e da desnutrição. Temos de rejeitar como algo normal a destruição dos nossos semelhantes. De nenhum modo, devemos permitir que as grandes organizações de comunicação nos intimidem, nem as fábricas das teorias neoliberais das grandes corporações, pois todas as corporações se ocupam, primeiro, de controlar as consciências, de controlar, como podem, a imprensa e o debate público. E tratam de ocupar o debate público, para esvaziar os cérebros.” – Jean Ziegler