“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Pobre e Caridade

Há números que gelam: um quarto da população portuguesa (23,3%) está “em risco de pobreza ou exclusão”. Na União Europeia, a percentagem média de pessoas nessa situação é de 22,5%. Bulgária, Grécia e Roménia têm taxas superiores a 34%.

“Ainda há cerca de 113 milhões de pessoas na UE nesta situação”, quase 2,4 milhões das quais em Portugal.

Infelizmente, Portugal sempre foi um país com muitos pobres, mesmo quando o ouro vindo do Brasil entrava aos lingotes e muitos enriqueciam.

Quando li acerca da utopia de José Ferreira Pinto Basto, aprendi como vivia um pobre no século XIX. A diferença relativamente aos nossos dias, embora não tão significativa como seria desejado, é enorme.

É importante contextualizar e conhecer o passado, para que não se alimentem ondas saudosistas tenebrosas, como aquelas a que periodicamente assistimos.

Antigamente, a miséria era mais abrangente, não só a material mas a espiritual. Naquele tempo, havia muitos crimes, pouco divulgados é certo, o que está no extremo oposto do que sucede hoje, que são falados (é essa a expressão) ad nauseum.

Os crimes sobre as crianças eram, ao contrário do que por vezes ouço, legais e perpetuados sem escrúpulos.

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Por mais estranho que hoje nos pareça, o pobre do século XIX trabalhava muito.

O trabalho manual era, no entanto, mal pago e não existiam contratos.

Os rendimentos, habitualmente, não eram sequer suficientes para a alimentação, vestuário e alojamento.

Ao contrário do que acontece nos nossos dias, caiam na extrema miséria as vítimas de acidente, doença, velhice ou despedimento, uma vez que não havia qualquer mecanismo que as ajudasse nestas situações.

Esta grossa fatia da população portuguesa ficou conhecida por «Classes desvalidas» e pouco se sabe sobre ela.

“Os pobres são massas anónimas que escapam quase totalmente ao esforço interpretativo do historiador. Que sabemos nós sobre os seus anseios, as suas crenças, os seus valores? Que podemos saber sobre as suas dificuldades e alegrias quotidianas? O não pobre, aquele que se situa fora do mundo da pobreza, interpreta, escreve, legisla, actua sobre ele, e é através destes testemunhos externos que o pulsar desse mundo nos aparece aqui e ali.”

“Durante séculos, o Cristianismo considerou o pobre a imagem de Cristo e a esmola o símbolo de amor ao próximo. Assim, o pobre era uma necessidade à salvação dos ricos, pois estes redimiam, dessa forma, os seus pecados. Era esta a assistência prestada aos pobres uma forma peculiar de exercer a caridade, já que, sem esta possibilidade, não poderiam os ricos obter a remissão dos seus pecados.”

O que acontecia com as crianças?

“No século XIX, o abandono de crianças era permitido por lei. Paradoxalmente, esta era uma forma de as proteger, isto é, ao facilitar a exposição, evitava-se um mal maior, tendo em conta que o infanticídio grassava por todo o país.”

“As câmaras e as misericórdias pagavam a amas que criavam os “expostos” até à idade de sete anos. Nesta altura, o juiz nomeava um tutor que os receberia como empregados a troco de alimentos, vestuário e dormida. As amas tinham direito de preferência no caso de estarem interessadas nos serviços das crianças. No caso de não surgirem interessados, o juiz colocava editais apregoando “o auto de arrematação” da criança. Este acto praticava-se para expostos e para os órfãos.”

“É costume introduzido em muitos juízos de órfãos arrematar estes miseráveis como quem vende uma besta em praça pública (…) e um tostão que se lançou mais pelo serviço de um ano foi bastante para ficar sem o filho a viúva, que se não achava com meios de lhe pagar tão grande soldada”. Aos vinte anos, os expostos tornavam-se livres e emancipados.

A roda tinha também um papel moralizador de costumes, que se prendia com a necessidade de preservar a honra de mulheres consideradas honestas a quem um momento de fraqueza desonraria para sempre, bem como às suas famílias. O hábito de expor acentuou-se, a administração pública não conseguiu acolher todas as crianças e atingiam-se níveis de mortalidade infantil elevadíssimos.

no ano de 1862 foram abandonadas 16294 crianças, correspondendo uma exposição por cada oito nascimentos.

Apesar da Constituição de 1822 exprimir concretamente o direito à “instrução primária e gratuita a todos os cidadãos” (art.º 145), o certo é que, só depois de 1834, surgiram as primeiras tentativas de reforma geral do ensino. Apesar da lei, a taxa de analfabetismo manteve-se altíssima. Segundo um estudo de António Nóvoa, em 1878, 82,4% da população mantinha-se analfabeta. Ainda de acordo com o mesmo investigador, baseado em documentação de uma inspecção de 1867, “Os alunos das escolas primárias, apesar de uma proveniência social heterogénea, tinham predominância urbana e pertenciam geralmente às classes abastadas” .

Todos os parágrafos entre aspas pertencem à tese de Olga Maria de Azevedo Almeida, “Utopias Realizadas”.

A imagem da pobre bela e cândida é uma idealização do pintor Alfred Seifert.

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Do outro lado de mim

O castelo do outro lado

Do outro lado de mim há um rio –
Ela disse-lhe ao ouvido.

Foram vê-lo.
Ela deu-lhe a boca,
ele acreditou na travessia
– Alcançar o castelo do outro lado.

Inventou um barco,
um remo para ele,
outro para ela.

Mas não atravessaram o sonho,
vogaram em círculo,
sempre o mesmo círculo…

Ela não remou.

Vitorino Almeida Ventura

Fotografia do francês Jesse Salto com aqueles marinheiros cheios de salsugem, descobertos no site IGNANT.


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Aerolivro

A memória nunca foi o meu trunfo.

Nunca recitei poemas de cor, nem mesmo depois de lê-los cinquenta vezes.

O único aspecto positivo dessa minha incapacidade é que de todas as vezes que leio um poema de que gosto, descubro uma palavra fascinante ou uma imagem de que me tinha esquecido.

Hoje, lamentei esta minha incapacidade.

Queria tanto decorar estes vinte e dois minutos da exposição do escritor valter hugo mãe. Ouvi-o repetidas vezes e queria fixar cada ideia e cada formulação frásica.

Gosto de ler vhm, mas neste momento gosto até mais de ouvi-lo.

“A sobrevivência não é teórica, é a coisa prática [mas] o que nos assegura a humanidade é a Fernanda Montenegro, a Elza Soares, é o Chico Buarque, é o Caetano Veloso, é o Raduan Nassar, é o Guimarães Rosa, é o Machado de Assis; são estas pessoas que nos conferem e nos auscultam na amplitude humana.”

“Infelizmente, parece que o lirismo e sobretudo a delicadeza são valores obsoletos, mas para mim eles compõem exactamente o que justifica a humanidade ou compõem aquilo que pode caracterizar a humanidade.

Para mim, a construção humana é uma fuga ao grotesco; é um caminho para longe do grotesco e inclusive é até um caminho que opera na nossa condição animal mas que de alguma forma pretende fazer uma redenção [desse lado] animal.

A gentileza, a delicadeza, a sensibilidade, o conhecimento, a aprendizagem possível, todo o exercício de benignidade são o que justifica o projecto humano.”

O escritor leu também um excerto que enriqueceria a minha vida e tornar-me-ia mais feliz, se estivesse disponível para consulta na minha cabeça:

“As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar.   Os livros são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.    O leitor entra com o livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.   Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam furos na cabeça. […]

As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante. E há invariavelmente quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.   Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem.

Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor.   Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.” 

valter hugo mãein Contos de cães e maus lobos   


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Ainda bem

Durante a adolescência e pelos meus vinte anos, morri muitas vezes de Amor.

Da forma mais sofrida possível.

Este poema de Maria do Rosário Pedreira devia ser dobrado com a bula dos antidepressivos que compramos quando nos sangra o coração imaturo.

Na altura em que me afundava em choro e Chico Buarque, não acreditava num futuro feliz, a minha vida acabava no momento em que “o amor da minha vida” tinha a frieza demente de acabar comigo.

Inevitavelmente, apareceram outros amores, uns mais certos do que outros, que ajudaram a estruturar o maior de todos: o amor-próprio.

Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem

que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver. Ainda bem

que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.

Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.

Maria do Rosário Pedreira


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Indescritível

A mais bela (e verdadeira!) descrição de um beijo é de Afonso Cruz.

No livro Princípio de KARENINA :

“Recordo muito bem o trajecto que os nossos lábios, os meus e os da Fernanda, fizeram pela primeira vez, uns na direcção dos outros, até se tocarem, a sua lenta aproximação, o tempo ia desacelerando, as pálpebras caíram criando a noite, a noite melancólica dos amantes, os lábios cada vez mais perto, a respiração quente (há quem diga que é doce, mas é uma hipérbole poeticamente pobre, um beijo tem de ser tudo menos doce, tem de conjugar demónios), os lábios cada vez mais perto, o coração cada vez mais como as gazelas do monte Hebron, os lábios cada vez mais perto, talvez as nossas mãos se tenham apertado, o rosto enrubescido (noutras alturas fica corado, mas com os beijos enrubesce, há um glossário apropriado a todas as situações e devemos estar atentos à linguagem certa, devemos muito à exactidão), os lábios cada vez mais perto, o coração aos pulos pelo monte Hebron, as pernas frágeis e vacilantes sob o peso do que está para vir, os lábios cada vez mais perto, mil anos mais perto, pois o tempo está quase parado, uma inspiração entrecortada, arrepios pelo corpo, os lábios cada vez mais perto, uma eternidade mais perto, os pêlos dos braços eriçados, a pressão na boca do estômago, alguns cabelos colados à testa com o suor do calor de Julho, as bocas entreabertas, os lábios cada vez mais perto.

E tocaram-se.”