“Ainda há cerca de 113 milhões de pessoas na UE nesta situação”, quase 2,4 milhões das quais em Portugal.
Infelizmente, Portugal sempre foi um país com muitos pobres, mesmo quando o ouro vindo do Brasil entrava aos lingotes e muitos enriqueciam.
Quando li acerca da utopia de José Ferreira Pinto Basto, aprendi como vivia um pobre no século XIX. A diferença relativamente aos nossos dias, embora não tão significativa como seria desejado, é enorme.
É importante contextualizar e conhecer o passado, para que não se alimentem ondas saudosistas tenebrosas, como aquelas a que periodicamente assistimos.
Antigamente, a miséria era mais abrangente, não só a material mas a espiritual. Naquele tempo, havia muitos crimes, pouco divulgados é certo, o que está no extremo oposto do que sucede hoje, que são falados (é essa a expressão) ad nauseum.
Os crimes sobre as crianças eram, ao contrário do que por vezes ouço, legais e perpetuados sem escrúpulos.
Por mais estranho que hoje nos pareça, o pobre do século XIX trabalhava muito.
O trabalho manual era, no entanto, mal pago e não existiam contratos.
Os rendimentos, habitualmente, não eram sequer suficientes para a alimentação, vestuário e alojamento.
Ao contrário do que acontece nos nossos dias, caiam na extrema miséria as vítimas de acidente, doença, velhice ou despedimento, uma vez que não havia qualquer mecanismo que as ajudasse nestas situações.
Esta grossa fatia da população portuguesa ficou conhecida por «Classes desvalidas» e pouco se sabe sobre ela.
“Os pobres são massas anónimas que escapam quase totalmente ao esforço interpretativo do historiador. Que sabemos nós sobre os seus anseios, as suas crenças, os seus valores? Que podemos saber sobre as suas dificuldades e alegrias quotidianas? O não pobre, aquele que se situa fora do mundo da pobreza, interpreta, escreve, legisla, actua sobre ele, e é através destes testemunhos externos que o pulsar desse mundo nos aparece aqui e ali.”
“Durante séculos, o Cristianismo considerou o pobre a imagem de Cristo e a esmola o símbolo de amor ao próximo. Assim, o pobre era uma necessidade à salvação dos ricos, pois estes redimiam, dessa forma, os seus pecados. Era esta a assistência prestada aos pobres uma forma peculiar de exercer a caridade, já que, sem esta possibilidade, não poderiam os ricos obter a remissão dos seus pecados.”
O que acontecia com as crianças?
“No século XIX, o abandono de crianças era permitido por lei. Paradoxalmente, esta era uma forma de as proteger, isto é, ao facilitar a exposição, evitava-se um mal maior, tendo em conta que o infanticídio grassava por todo o país.”
“As câmaras e as misericórdias pagavam a amas que criavam os “expostos” até à idade de sete anos. Nesta altura, o juiz nomeava um tutor que os receberia como empregados a troco de alimentos, vestuário e dormida. As amas tinham direito de preferência no caso de estarem interessadas nos serviços das crianças. No caso de não surgirem interessados, o juiz colocava editais apregoando “o auto de arrematação” da criança. Este acto praticava-se para expostos e para os órfãos.”
“É costume introduzido em muitos juízos de órfãos arrematar estes miseráveis como quem vende uma besta em praça pública (…) e um tostão que se lançou mais pelo serviço de um ano foi bastante para ficar sem o filho a viúva, que se não achava com meios de lhe pagar tão grande soldada”. Aos vinte anos, os expostos tornavam-se livres e emancipados.
A roda tinha também um papel moralizador de costumes, que se prendia com a necessidade de preservar a honra de mulheres consideradas honestas a quem um momento de fraqueza desonraria para sempre, bem como às suas famílias. O hábito de expor acentuou-se, a administração pública não conseguiu acolher todas as crianças e atingiam-se níveis de mortalidade infantil elevadíssimos.
Só no ano de 1862 foram abandonadas 16294 crianças, correspondendo uma exposição por cada oito nascimentos.
Apesar da Constituição de 1822 exprimir concretamente o direito à “instrução primária e gratuita a todos os cidadãos” (art.º 145), o certo é que, só depois de 1834, surgiram as primeiras tentativas de reforma geral do ensino. Apesar da lei, a taxa de analfabetismo manteve-se altíssima. Segundo um estudo de António Nóvoa, em 1878, 82,4% da população mantinha-se analfabeta. Ainda de acordo com o mesmo investigador, baseado em documentação de uma inspecção de 1867, “Os alunos das escolas primárias, apesar de uma proveniência social heterogénea, tinham predominância urbana e pertenciam geralmente às classes abastadas” .
Todos os parágrafos entre aspas pertencem à tese de Olga Maria de Azevedo Almeida, “Utopias Realizadas”.
A imagem da pobre bela e cândida é uma idealização do pintor Alfred Seifert.