inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar
Esta fé nos adultos é a maior fantasia que perpetuamos na imaginação das crianças; bem mais ilusória do que o Pai Natal ou o Coelhinho da Páscoa.
Não temos alternativa, seria insuportável surgir neste planeta pequeno e vulnerável e saber a verdade: estamos cercados por criancinhas com mais de 1,50m e muitos deles dirigem o mundo! Criancinhas que erram e estragam, mas cujos atos provocam consequências bem mais graves do que partir um carrinho, espremer o gato num abraço ou mentir à mãe.
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Manuel António Pina respondeu com mais sinceridade do que eu à questão “Quando é que aprendeste a ser sdulta?”, em 1983, no livro O pássaro na cabeça.
“Parece que crescemos mas não, somos ainda do mesmo tamanho.
A escritora brasileira Líria Porto descreve o que estamos todos a sentir: saudade.
durante a tua ausência deitei-me do outro lado dormi de rosto colado com a tua fronha
a saudade é uma doninha a saudade é uma toupeira ela rói dentro e fora rói os ossos rói o peito o corpo os sentimentos a saudade rói os sonhos
e mostra os dentes
Não é nada fácil resistir a este bichinho roedor, embora saibamos que os valores que nos motivam ao autoisolamento voluntário são os mais nobres.
A Páscoa chegou num tempo fora do calendário.
Estamos adiados.
Pela Beatriz, esforço-me por assinalar alguma excepcionalidade nos fins-de-semana e datas célebres.
Pela Beatriz, desenhámos coelhos, fizemos bolos e organizámos uma caça aos ovos.
Mas a tristeza está na cara dos poucos que passam na rua e a saudade dos que amamos e que estão tão longe “rói os ossos ” e “rói o peito”.
Gritou-me o meu vizinho da janela: “Temos de estar arrecadados!”.
Oxalá aprendamos a nunca adiar os verdadeiros encontros quando tivermos de novo oportunidade; oxalá nunca mais permitamos que as urgênciazinhas do dia-a-dia se sobreponham aos abraços que ficamos a dever aos nossos amigos e família.
É o meu desejo de Páscoa.
Em sintonia com a celebração cada vez mais oportuna do homem que se superou, renovou e renasceu, há mais de 2000 anos.
Não sei se a pandemia é o resultado de uma conspiração chinesa, se acontece porque a Natureza está saturada dos humanos ou, pelo contrário, se é a consequência dos humanos se terem esquecido que fazem parte da Natureza, ou se foi Deus ou um demónio que decidiram dar-nos uma lição de humildade.
É um vírus poderoso, mas acredito que lhe falta a grande capacidade humana de luta: a inteligência é uma prerrogativa nossa e é ela que conduz à ciência.
A minha esperança na ciência não é uma questão de fé, pois a ciência não é divina nem mágica; no entanto, tem-nos curado de muitas doenças e proporcionado conquistas inimagináveis.
Infelizmente, não lhe demos a oportunidade de nos curar da imbecilidade e de outras tantas ameaças mais ou menos concretas em que andamos mergulhados há séculos.
A maior prova de que a nossa sociedade já estava há muito doente é que o Conhecimento e a Educação têm sido desprezados e o virtuosismo futebolístico e outras alucinações (que nem virtuosas são) foram valorizadas e remuneradas insanamente.
Agora, dependemos de cientistas, investigadores, médicos e enfermeiros que tanto desprezámos e pedimos-lhe, despudoradamente, um milagre e, já agora, que arrisquem a vida, todos os dias, por nós.
E eles fazem-no!
Espero que, depois deste abalo, os valores que nos devem reger encontrem o seu lugar e que quem salva vidas, quer seja com um gesto humilde, quer seja com rigor científico, passe a ser o nosso herói. E justamente divulgado e remunerado.
Estas palavras de Nick Cave, publicadas no Blitz, não são científicas, são poéticas, o que é mais ou menos a mesma coisa. A minha amiga Carmen partilhou comigo a resposta do cantor à grande pergunta do momento:
“o que fazemos agora?“.
[…] o músico admitiu que “os tempos mudaram”, e que agora “enfrentamos um inimigo comum – imparcial, insensível e de magnitude incomensurável”, pelo que “não é tempo de nos abstrairmos”, e sim de “sermos cautelosos com as nossas palavras e as nossas opiniões”.
“Teremos de nos recuperar, não só pessoalmente como socialmente”, continuou. “No futuro, ser-nos-á dada a oportunidade de nos refugiarmos numa versão antiga de nós e do nosso mundo – insular, interesseiro e tribalista – ou de perceber as ligações e uniformidades de todos os seres humanos”.
“Em isolamento, vamos ter de decidir entre o que queremos preservar do nosso mundo e de nós próprios e o que desejamos descartar”.