“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Tu

No último episódio de uma das minhas séries favoritas, Years and Years, a matriarca (interpretada pela fantástica Anne Reid) faz um discurso incrível no dia de Natal, para espanto e desconforto dos membros da família… e dos espectadores da série.

O tom pode ser interpretado como culpabilizante, mas talvez uma nonagenária já tenha o estatuto de nos apontar o indicador.

Eu considero o discurso responsabilizante.

Somos cidadãos e temos de activar o nosso modo interventivo, sob pena de que a nossa demissão alimente um sistema ainda mais corrupto e desumanizado. O nosso poder tem de ser exercido nas nossas decisões, escolhas e exigências diárias, assim como no processo eleitoral.

De outro modo, tudo pode acontecer:

“É tudo culpa vossa! Os bancos, o governo, a recessão, os políticos medíocres!

Vocês têm a culpa de tudo o que correu mal. A culpa é de cada um de nós…

Podemos ficar aqui todo o dia a culpar os outros. Culpamos a economia, culpamos a Europa, a oposição, a metereologia, os grandes acontecimentos da História; dizemos que tudo está fora de controlo e que estamos desprotegidos, pequenos e frágeis, mas nós é que somos os culpados. Porquê?

Vejam o caso da t-shirt que custa uma libra. Nós não lhe resistimos. Nenhum de nós lhe resiste. Achamos uma pechincha e compramos. Sabemos que não tem qualidade, mas serve. O dono da loja ganha 5 míseros pence por ela. O pobre camponês, no campo, ganha 0,01 pence. Nós achamos que esta situação é correta, concordamos com ela, todos nós: damos o nosso dinheiro e participamos neste sistema durante toda a vida.

Tudo começou a correr muito mal, nos supermercados, quando substituiram as pessoas que nos atendiam por caixas automáticas. Não gostámos, mas não protestámos, não escrevemos no livro de reclamações, não mudámos de supermercado; conformámo-nos! Agora todas as pessoas que trabalhavam nas caixas foram despedidas e nós permitimos que isso acontecesse. Hoje, até gostamos, porque pagamos e não temos de olhar ninguém nos olhos, não temos de olhar para a pessoa que ganha menos do que nós.

Temos culpa, sim. Este é o mundo que construímos.

Parabéns!”

A avó alerta-nos ainda para os políticos polémicos, disruptivos e irracionais:

“Tenham cuidado! Livramo-nos de uma aberração política e acorda outra, imediatamente, dentro da caverna.

Cuidado com os políticos engraçadinhos, corruptos e palhaços. Riem-se e levam-nos ao inferno.”

É impossível ouvir estas palavras e não pensar em Trump ou Bolsonaro ou num outro Ventureiro aqui entre portas.

Os votos de Feliz Natal costumam ser ligeiros e delicados, mas este Natal não é como os outros.

Vou aproveitar a pausa e o isolamento profilático que me calhou para reflectir sobre o mundo que quero deixar, como presente, aos mais pequenos.

Temos vários exemplos de seres humanos que fizeram a diferença.

Acabei de ver Snowden, um homem que denunciou o sistema de escutas americano: o mesmo que invadiu tranquilamente os nossos computadores, leu os nossos emails e sms e accionou a câmara do nosso computador pessoal, sem necessidade de qualquer autorização prévia. Snowden está, desde 2013, refugiado na Rússia… mas a lei americana foi alterada, em consequência da sua acção.

Definitivamente, não somos todos feitos da massa dos heróis, mas o meu objectivo de vida é, pelo menos, distanciar-me dos vermes e deixar clara a minha repugnância por quem os segue.

Preciso de biografias inspiradoras, ainda que estas sejam frequentemente silenciadas, em nome de uma ideia de segurança, de saúde e de bem-estar comum que nos pregam.

Se não é essa a inspiração que nos guia, não sei bem por que razão andamos a celebrar todos os anos o nascimento de um homem absolutamente excepcional.

Feliz Natal!

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Ficção

A melhor ficção actual está nos livros, mas também nas séries de televisão.

Resisti muito a esta evidência, presa aos meus preconceitos intelectuais.

Não vi muitas séries, nem pretendo ver, porque o tempo não é elástico e não posso correr o risco de ficar sem disponibilidade para a leitura, mas já descobri três incríveis.

1- Chernobyl

Uma série dividida em cinco partes, baseada no terrível acidente nuclear de Chernobyl de 1986, com todos os meandros políticos e pessoais chocantes que (nem) imaginamos. Tão perfeita a todos os níveis que fiquei com a sensação de estar a assistir a um incrível documentário.

2- Years and Years

Com Emma Thompson. Não é preciso dizer mais, mas ver a Emma Thompson como André Ventura, em versão “à solta”, revista e aumentada… e Primeiro Ministro é aterrador. Só a Emma Thomson para fazer esta figura terrivelmente sublime!

Assistimos, em poucos episódios, ao passar dos anos nas próximas décadas.

Tudo o que nos ameaça e preocupa, hoje, concretiza-se e vive-se numa distopia (in)esperada:

  • as alterações climáticas levam mesmo a chuvas diluviais e à subida da orla costeira de muitas cidades europeias, há desalojados de todas as condições sociais e de todos os países; procuram entrar na Grã-Bretanha muitos refugiados políticos desesperados; assistimos a ataques terroristas com armas químicas; temos direito a uma pandemia mais mortífera do que a que vivemos actualmente; a vitória de partidos de extrema direita leva à eliminação de direitos básicos nas democracias que conhecemos, os homossexuais são perseguidos; os jovens desenvolvem bizarras obsessões cibernéticas, …

Esta série é um alerta poderoso para o que nos pode acontecer, no futuro, se não agirmos, no presente.

3- A Casa de Papel

Quem é que nunca sonhou em roubar um banco, dar um estalo ao capitalismo e ainda ter dinheiro para viver no paraíso, sem prejudicar outro comum mortal?

Mais do que o assalto perfeito à Casa da Moeda de Espanha, este bando assina um manifesto político. Adrenalina, humor, intervenção e sensualidade em doses bem altas.

Vi outras séries com interesse:

  • Ozark: uma série formalmente irrepreensível; retrata a vida de uma família comum que se envolve com um cartel de droga mexicano. Violenta e viciante, conta com as atrizes Laura Linney e Lisa Emery.
  • Normal People: a série que eu deveria ter visto quando tinha vinte anos.
  • Dietland: e se deixássemos de questionar o nosso corpo? E se fossem os homens a aparecer objectificados nas capas das revistas? E se as mulheres deixassem de ter medo de andar, na rua, sozinhas à noite? Para isso era preciso que acontecesse uma revolução! Acontece, nesta série. O feminismo continua a ser um movimento pacífico, mas há um grupo armado de feministas que espalha o terror entre os homens abusadores.