No último episódio de uma das minhas séries favoritas, Years and Years, a matriarca (interpretada pela fantástica Anne Reid) faz um discurso incrível no dia de Natal, para espanto e desconforto dos membros da família… e dos espectadores da série.
O tom pode ser interpretado como culpabilizante, mas talvez uma nonagenária já tenha o estatuto de nos apontar o indicador.
Eu considero o discurso responsabilizante.
Somos cidadãos e temos de activar o nosso modo interventivo, sob pena de que a nossa demissão alimente um sistema ainda mais corrupto e desumanizado. O nosso poder tem de ser exercido nas nossas decisões, escolhas e exigências diárias, assim como no processo eleitoral.
De outro modo, tudo pode acontecer:
“É tudo culpa vossa! Os bancos, o governo, a recessão, os políticos medíocres!
Vocês têm a culpa de tudo o que correu mal. A culpa é de cada um de nós…
Podemos ficar aqui todo o dia a culpar os outros. Culpamos a economia, culpamos a Europa, a oposição, a metereologia, os grandes acontecimentos da História; dizemos que tudo está fora de controlo e que estamos desprotegidos, pequenos e frágeis, mas nós é que somos os culpados. Porquê?
Vejam o caso da t-shirt que custa uma libra. Nós não lhe resistimos. Nenhum de nós lhe resiste. Achamos uma pechincha e compramos. Sabemos que não tem qualidade, mas serve. O dono da loja ganha 5 míseros pence por ela. O pobre camponês, no campo, ganha 0,01 pence. Nós achamos que esta situação é correta, concordamos com ela, todos nós: damos o nosso dinheiro e participamos neste sistema durante toda a vida.
Tudo começou a correr muito mal, nos supermercados, quando substituiram as pessoas que nos atendiam por caixas automáticas. Não gostámos, mas não protestámos, não escrevemos no livro de reclamações, não mudámos de supermercado; conformámo-nos! Agora todas as pessoas que trabalhavam nas caixas foram despedidas e nós permitimos que isso acontecesse. Hoje, até gostamos, porque pagamos e não temos de olhar ninguém nos olhos, não temos de olhar para a pessoa que ganha menos do que nós.
Temos culpa, sim. Este é o mundo que construímos.
Parabéns!”
A avó alerta-nos ainda para os políticos polémicos, disruptivos e irracionais:
“Tenham cuidado! Livramo-nos de uma aberração política e acorda outra, imediatamente, dentro da caverna.
Cuidado com os políticos engraçadinhos, corruptos e palhaços. Riem-se e levam-nos ao inferno.”
É impossível ouvir estas palavras e não pensar em Trump ou Bolsonaro ou num outro Ventureiro aqui entre portas.
Os votos de Feliz Natal costumam ser ligeiros e delicados, mas este Natal não é como os outros.
Vou aproveitar a pausa e o isolamento profilático que me calhou para reflectir sobre o mundo que quero deixar, como presente, aos mais pequenos.
Temos vários exemplos de seres humanos que fizeram a diferença.
Acabei de ver Snowden, um homem que denunciou o sistema de escutas americano: o mesmo que invadiu tranquilamente os nossos computadores, leu os nossos emails e sms e accionou a câmara do nosso computador pessoal, sem necessidade de qualquer autorização prévia. Snowden está, desde 2013, refugiado na Rússia… mas a lei americana foi alterada, em consequência da sua acção.
Definitivamente, não somos todos feitos da massa dos heróis, mas o meu objectivo de vida é, pelo menos, distanciar-me dos vermes e deixar clara a minha repugnância por quem os segue.
Preciso de biografias inspiradoras, ainda que estas sejam frequentemente silenciadas, em nome de uma ideia de segurança, de saúde e de bem-estar comum que nos pregam.
Se não é essa a inspiração que nos guia, não sei bem por que razão andamos a celebrar todos os anos o nascimento de um homem absolutamente excepcional.
Feliz Natal!