“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Calhandrice

Quando há mais de vinte anos cheguei ao Alentejo, aprendi muitas palavras novas. Recordo-me da palavra “calhandreira”.

No programa Visita Guiada, de Paula Moura Pinheiro, fiquei a saber que as calhandreiras eram as mulheres que tinham a ingrata função de recolher e despejar os calhandros dos mais ricos. Os calhandros eram os objectos que guardavam os dejectos, antes de haver saneamento básico nas cidades. Estas mulheres passavam o dia com os calhandros à cabeça a circular pelas ruas. Imagino que os momentos de convívio e conversa fossem os únicos momentos de alívio e refrigério. A partir daí, associou-se a palavra calhandeira a quem se entretém a conversar sobre a vida dos outros.

Segundo Yuval Harari, no seu livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, foram os momentos de complexidade comunicativa, sobretudo acerca dos outros, que nos distinguiram definitivamente dos demais primatas.

O homo sapiens é, por excelência, um animal social.

“A troca de informações sobre leões, bisontes e rios foi muito útil, mas a informação mais importante que os humanos trocaram entre si não foi sobre leões ou bisontes – foi sobre eles próprios.”

“A cooperação social é a chave da nossa sobrevivência e reprodução. Para caçar bisontes ou construir bombas, temos de confiar uns nos outros.

É importante as pessoas saberem quem, no seu círculo, odeia quem, quem está com quem, quem é honesto, quem é vigarista.”

“Para seguir o estado das relações de umas poucas dúzias de pessoas é preciso obter e processar uma quantidade avassaladora de informação. Num grupo de 50 indivíduos, há 1225 relações de um para um, além de um sem número de combinações sociais complexas! Os chimpanzés mal conseguem manter unidos grupos de 50 indivíduos.”

Os chimpanzés são curiosos e gostam de saber as novidades do grupo, mas têm de vê-las, não conseguem espalhá-las. Como sabemos, para os sapiens é muito fácil: basta falar nas costas uns dos outros!

Não consigo digerir bem este desprezível hábito humano, mas agora consigo compreendê-lo melhor.

“A cusquice é uma atividade maldosa, mas verdadeiramente essencial à cooperação de massas.

Como a cusquice, regra geral, se centra nas transgressões, ajuda a implementar normas sociais e a manter a coesão.”

Ajudou na evolução, mas esta é, sem dúvida, a razão principal pelo qual a abomino: quem cusca tem quase sempre a pretensão de possuir uma superioridade moral e, por conseguinte, ambiciona forçar os outros a seguirem o seu padrão social!

“Mas até a cusquice tem os seus limites. Cusque-se muito ou pouco, a maioria das pessoas não conhece a vida pessoal de mais de 150 pessoas. É por isso que o limite crítico de capacidade das organizações humanas ronda este número mágico: 150. Abaixo do limite de 150, as comunidades, as empresas, as redes sociais e as unidades militares conseguem funcionar graças ao tráfico de informações e boatos. Não há necessidade de escalões, cargos ou regulamentos para manter a ordem. Ultrapassando o limite de 150 indivíduos, as coisas deixam de funcionar assim.”

“Então como foi possível ao homo sapiens ultrapassar o limite de 150? Como conseguiu fundar cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios com centenas de milhões de súbditos?”.

Graças a algo muito mais poderoso, mas também muito mais perigoso!

Já conto!

Entretanto, nas noites de segunda-feira, na RTP1, começou o documentário Deus Cérebro, de António José de Almeida, sobre este enigmático órgão.

Aprendi que o fogo permitiu que passássemos a cozinhar os alimentos e que tivéssemos, finalmente, o aporte calórico necessário para sustentar o nosso inesgotável cérebro. Concomitantemente, o controlo do fogo permitiu longos serões à volta da fogueira: tínhamos conforto e alimento para contar as nossas façanhas de caça, “tecer alianças, ajustar contas, coscuvilhar, dançar e cantar. A cooperação afirmou-se como um pilar crucial para o desenvolvimento da mente humana.”

Quanto maior o grupo social dos primatas maior é a dimensão da cabeça!

É o conceito de “cérebro social”, que se relaciona com a complexa relação que as pessoas estabelecem umas com as outras.

Neste documentário, os cientistas destacam ainda o sexto sentido.

Não são impressões ou melindres; é a incrível capacidade que o nosso cérebro tem de simular e antever o futuro para assim se preparar e nos proteger. A verdadeira inteligência, segundo vários cientistas, reside na nossa (maior) capacidade de antever o futuro e na nossa capacidade de nos relacionarmos. Mais do que a tão reconhecida inteligência cognitiva, o que nos permite brilhar e elevar-nos é a inteligência emocional. Seríamos todos mais felizes se a valorizássemos desde o berço!

Imagem e citações do livro Sapiens, uma Breve História da Humanidade.

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O pânico é o abutre que se senta no teu peito

Não sei quando voltaremos a sair livremente.

Estamos presos nos concelhos, em casa e, sobretudo, num espaço psicológico de opressão, desconfiança e medo.

Alguns estão pior: ficaram confinados em espaços interiores de moralismo, intolerância, policiamento, agressão, condenação e delação. Sinto profunda piedade por estes últimos, mas tenho por hábito conservar uma distância muito superior a 3 metros de mentes tóxicas .

Não saberemos tão cedo se há motivos reais para “os vários aprisionamentos” a que temos sido sujeitos.

Julgo que só daqui a dez anos vislumbraremos alguma luz. Por agora, cada um tem as suas motivações, teorias e certezas.

Tem sido assim em todos os tumultos históricos: muito mais tarde, descobrimos parte da enorme encenação que nos contaram.

Neste milénio, recordo-me do que aconteceu durante a sanguinária invasão do Afeganistão (mais de 30 mil civis afegãos mortos – BBC) ou da obscena demolição do Iraque (e as armas de destruição maciça que nunca apareceram!?).

Vou vivendo com o cuidado e com a serenidade possível.

Tento não cometer muitos atos de desobediência civil (apesar da minha natureza insurrecta), mesmo quando vejo que muitas das medidas são de natureza política e aleatória.

Faço um esforço enorme para não me envolver demasiado na narrativa atual. Não tenho a pretensão de saber onde está a verdade, nesta altura em que todos são cientistas de bancada, mas já vivi o suficiente para não ser totalmente crédula.

Juan Vicente Piqueras escreveu “Instruções para sair do deserto”.

Os desertos que mais me preocupam são, sem dúvida, os interiores; esses que estão a crescer dentro de nós: os que nos impedem de empatizar e solidarizar; os que nos impelem a atacar e culpar ferozmente “os outros” por uma pandemia mundial.

Desses desertos temos de sair a todo o custo, distinguindo bem as “gaivotas dos abutres”.

De outra forma, perderemos a nossa humanidade, dividir-nos-emos, enfraquecer-nos-emos e só sobreviverão os necrófagos. Esses, impiedosos que são, não nos deixarão os ossos!

Para sair deste íntimo deserto
é preciso saber que não tem saída.

Esperar, caminhar, desesperar,
cultivar a paciência até perdê-la
quando todo tu sejas já pura paciência.

É preciso sentir que o deserto és tu mesmo,
recordar com irónica ternura
aqueles dias só agora felizes
em que tivemos fé nas miragens.

Já não há mais coração do que aquele que ardeu.

Não há maneira nem água nem amanhã
nem oriente nem ocidente. Não há estrelas
que te digam onde, que te indiquem
messias ou saídas que não existem

até que um dia encontres diante de ti

as tuas pegadas de outros anos e

compreendas que chegaste ao teu passado

que já estás onde estavas

que morrerás de sede

Olha na areia as sombras dos abutres que julgavas gaivotas”

A imagem é do blog sempre inspirador IGNANT.

O título do post é uma frase do livro O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida Carvalho.


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Reinventar

Depois de ter lido que a indústria da moda é uma das mais poluentes do mundo e após ter refletido acerca das minhas compras impulsivas, desafiei-me a abster-me de comprar roupa durante dois meses.

A expressão é própria das dependências, mas o facto é que comprar roupa bonita é viciante: definitivamente, não é por necessidade que compramos o nosso sétimo casaco ou o quinto par de botas.

Cumpri o desafio. Espero que sejam apenas os primeiros dois meses, mas não avanço promessas.

Estive muitas vezes prestes a cair em tentação, confesso, mas mantive o foco nas minhas reais necessidades.

Continuo a visitar o Pinterest e a tentar combinar de forma diferente o que já tenho.

Fiz bainhas a algumas das minhas calças e dobrei outras para um ar mais moderninho.

As camisolas de lã de qualidade são sempre uma aposta segura e pode ser que compre uma (só uma!) nos saldos.

Enquanto isso, vou usando as que tenho, inspirada nesta simplicidade que nunca falha.

Este twin-set da Mango provocou-me muitas vezes…

Estes sobretudos fariam furor no meu roupeiro, mas vou passeando todos os outros que esperam a sua vez para se exibirem em Estremoz.

A esta cor de casaco talvez não resistisse…

Gosto da ideia de conjugar saias mais leves de Verão com camisolas de malha. Neste caso, só é preciso procurar no armário das roupas de Verão e seguir…

Os sapatos Oxford também podem voltar. Tenho dois pares no fundo do armário, tristonhos, há uns anos.

Votos de um Inverno muito sorridente!

Comprometo-me, agora, com muito mais seriedade, a manter os meus amigos bem mais perto do que no miserável ano que passou! Preciso muito deles para me manter equilibrada e firme nos meus desafios verdadeiramente importantes!


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Sapiens: tirano ou cuidador

 Yuval Noah Harari, professor do departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveu, em 2014, Sapiens: Uma Breve História da Humanidade.

Em 2020,  surgiu a novela gráfica, como resultado da parceria entre o autor Yuval Harari, o escritor David Vandermeulen e o ilustrador Daniel Casaneve.

O livro narra a evolução do Homem desde a pré-história até à atualidade e explica de que modo este ultrapassou as restantes espécies e os outros membros da família sapiens.

Este salto para o topo do ecossistema foi tão precipitado que nem tivemos tempo para nos ajustar.

Talvez este nosso “novo-riquismo” hierárquico explique os nossos tiques tiranetes em relação às outras espécies.

Sempre me questionei acerca desta nossa sede pungente de domínio sobre a flora, a fauna e, surpreendentemente, até sobre os outros seres humanos. Este livro deu-me uma pista para a sofreguidão humana de esmagar o outro.

“Há pouco tempo, éramos animais insignificantes no meio da cadeia alimentar. Depois, de súbito, saltámos para o topo. Talvez demasiado depressa. Aos leões, às águias e aos tubarões, chegar gradualmente ao topo da pirâmide levou milhões de anos.”

“Este processo gradual permitiu que o ecossistema se autorregulasse, impedindo que os leões e os tubarões lançassem o caos. À medida que os leões se tornaram mais mortíferos, as gazelas tornaram-se mais rápidas, por exemplo.”

Mas a humanidade saltou tão rapidamente para o topo que o ecossistema não teve tempo de se ajustar.

Nem os próprios humanos.

Os outros animais, que estiveram durante milhares de anos no topo do ecossistema, exibem um aspecto físico imponente e cheio de dignidade; vejamos os casos do leão, do lobo, do tubarão ou da águia.

Já o sapiens

“Não há muito tempo, nós éramos os pés rapados da savana. Os nossos primeiros instrumentos foram usados para rapar os restos deixados por leões e hienas. Este facto ajuda-nos a compreender a nossa história e a nossa psicologia.”

Individualmente e enquanto espécie, já é tempo de nos tranquilizarmos com o “posto” conquistado.

Não sei se Yuval Harari estaria de acordo, mas julgo que somos uma espécie que deve a sua sobrevivência ao facto de termos sido (e sermos), mais do que déspotas, diligentes cuidadores.

Se pensarmos bem, nenhum de nós cá estaria se não nos tivessem zelado, nos primeiros tempos de vida.

Ao contrário dos outros animais, não caminhamos, não nos alimentamos sozinhos, nem temos capacidade de defesa, após dias, semanas ou meses de vida. De facto, ficamos em total dependência relativamente aos nossos progenitores (ou outros adultos) pelo menos uma década. Quero acreditar que não é por acaso que essa dependência, no início da vida, sucede entre os humanos…

Surpreendentemente, esquecemos essa dádiva e ignoramos a grandiosa lição de generosidade milenar que experienciámos: todos somos cuidadores ou fomos cuidados. Que paradoxo! Crescemos e tornamo-nos predadores vorazes e soberbos!

O livro de Yuval Noah Harari, de forma divertida, coloca em cima da mesa muitas questões científicas, mas também filosóficas. O autor, muito sabiamente, realça que “as questões éticas e filosóficas têm sempre um lugar central nos seus livros. Não vale a pena escrever História se nos esquecermos da dimensão ética.

Editora: ELSINORE.