Quando há mais de vinte anos cheguei ao Alentejo, aprendi muitas palavras novas. Recordo-me da palavra “calhandreira”.
No programa Visita Guiada, de Paula Moura Pinheiro, fiquei a saber que as calhandreiras eram as mulheres que tinham a ingrata função de recolher e despejar os calhandros dos mais ricos. Os calhandros eram os objectos que guardavam os dejectos, antes de haver saneamento básico nas cidades. Estas mulheres passavam o dia com os calhandros à cabeça a circular pelas ruas. Imagino que os momentos de convívio e conversa fossem os únicos momentos de alívio e refrigério. A partir daí, associou-se a palavra calhandeira a quem se entretém a conversar sobre a vida dos outros.
Segundo Yuval Harari, no seu livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, foram os momentos de complexidade comunicativa, sobretudo acerca dos outros, que nos distinguiram definitivamente dos demais primatas.
O homo sapiens é, por excelência, um animal social.
“A troca de informações sobre leões, bisontes e rios foi muito útil, mas a informação mais importante que os humanos trocaram entre si não foi sobre leões ou bisontes – foi sobre eles próprios.”
“A cooperação social é a chave da nossa sobrevivência e reprodução. Para caçar bisontes ou construir bombas, temos de confiar uns nos outros.
É importante as pessoas saberem quem, no seu círculo, odeia quem, quem está com quem, quem é honesto, quem é vigarista.”
“Para seguir o estado das relações de umas poucas dúzias de pessoas é preciso obter e processar uma quantidade avassaladora de informação. Num grupo de 50 indivíduos, há 1225 relações de um para um, além de um sem número de combinações sociais complexas! Os chimpanzés mal conseguem manter unidos grupos de 50 indivíduos.”
Os chimpanzés são curiosos e gostam de saber as novidades do grupo, mas têm de vê-las, não conseguem espalhá-las. Como sabemos, para os sapiens é muito fácil: basta falar nas costas uns dos outros!
Não consigo digerir bem este desprezível hábito humano, mas agora consigo compreendê-lo melhor.

“A cusquice é uma atividade maldosa, mas verdadeiramente essencial à cooperação de massas.
Como a cusquice, regra geral, se centra nas transgressões, ajuda a implementar normas sociais e a manter a coesão.”
Ajudou na evolução, mas esta é, sem dúvida, a razão principal pelo qual a abomino: quem cusca tem quase sempre a pretensão de possuir uma superioridade moral e, por conseguinte, ambiciona forçar os outros a seguirem o seu padrão social!
“Mas até a cusquice tem os seus limites. Cusque-se muito ou pouco, a maioria das pessoas não conhece a vida pessoal de mais de 150 pessoas. É por isso que o limite crítico de capacidade das organizações humanas ronda este número mágico: 150. Abaixo do limite de 150, as comunidades, as empresas, as redes sociais e as unidades militares conseguem funcionar graças ao tráfico de informações e boatos. Não há necessidade de escalões, cargos ou regulamentos para manter a ordem. Ultrapassando o limite de 150 indivíduos, as coisas deixam de funcionar assim.”
“Então como foi possível ao homo sapiens ultrapassar o limite de 150? Como conseguiu fundar cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios com centenas de milhões de súbditos?”.
Graças a algo muito mais poderoso, mas também muito mais perigoso!
Já conto!
Entretanto, nas noites de segunda-feira, na RTP1, começou o documentário Deus Cérebro, de António José de Almeida, sobre este enigmático órgão.
Aprendi que o fogo permitiu que passássemos a cozinhar os alimentos e que tivéssemos, finalmente, o aporte calórico necessário para sustentar o nosso inesgotável cérebro. Concomitantemente, o controlo do fogo permitiu longos serões à volta da fogueira: tínhamos conforto e alimento para contar as nossas façanhas de caça, “tecer alianças, ajustar contas, coscuvilhar, dançar e cantar. A cooperação afirmou-se como um pilar crucial para o desenvolvimento da mente humana.”
Quanto maior o grupo social dos primatas maior é a dimensão da cabeça!
É o conceito de “cérebro social”, que se relaciona com a complexa relação que as pessoas estabelecem umas com as outras.
Neste documentário, os cientistas destacam ainda o sexto sentido.
Não são impressões ou melindres; é a incrível capacidade que o nosso cérebro tem de simular e antever o futuro para assim se preparar e nos proteger. A verdadeira inteligência, segundo vários cientistas, reside na nossa (maior) capacidade de antever o futuro e na nossa capacidade de nos relacionarmos. Mais do que a tão reconhecida inteligência cognitiva, o que nos permite brilhar e elevar-nos é a inteligência emocional. Seríamos todos mais felizes se a valorizássemos desde o berço!
Imagem e citações do livro Sapiens, uma Breve História da Humanidade.