Com dez anos, a Beatriz lê sozinha, durante a meia-hora que instituí, cá em casa, de leitura diária silenciosa.
No entanto, continuo a trazer livros da biblioteca para uma amorosa leitura a duas, antes de adormecermos.
É a melhor forma de nos despedirmos do dia: abraçadas, no meio das mais belas aventuras.
Entre biografias, livros de aventuras e reflexões, por vezes, voltamos aos livros com ilustrações e histórias simples.
Como este, com a história do Lucas.
Lucas sabia, desde bebé, que tinha um destino: voar.
Passava os dia à janela, com os olhos perdidos nos pássaros.
Tentava, a todo o custo, realizar o seu sonho. Apelou até para divindades, como o Pai Natal. Sem sucesso!
Na frustração em que vivia, nem se entusiasmou quando a mãe lhe explicou que havia outras formas de voar.
Quando lhe ofereceram um livro, foi avançando, hesitante,… até que se entusiasmou.
Tal foi o entusiasmo que a situação se descontrolou.
Insanamente.
Só quem nunca entrou no mundo da ficção e da poesia é que não compreende esta insanidade que, quando temos sorte (e o livro certo), se apodera do nosso espírito.
Felizmente, o Lucas aprendeu a controlar os voos e a desfrutar a viagem.
Quem nasceu em Democracia e Liberdade, como eu, nunca pensou que estas conquistas, relativamente recentes no nosso país, poderiam tornar-se tão frágeis e voláteis.
Vivemos em ininterruptos estados de calamidade/emergência e outros estados híbridos há meses.
Receio que quem realmente nos governa (e não me refiro ao séquito do Primeiro-Ministro) se habitue a esta submissão generalizada, ordeira (e tão conveniente) dos povos.
O pequeno comércio foi arruinado, a restauração familiar faliu, os produtores por conta própria foram cilindrados e os grandes distribuidores monopolizam e engordam. As grandes fortunas nunca estiveram tão prósperas, como em 2020/2021:
“Assim [o enriquecimento] aconteceu com os maiores milionários de todo o mundo, que se “aguentaram bastante bem” neste novo normal e viram as suas fortunas engordar 27,5% entre abril e julho, escreve o jornal “The Guardian“.
Concomitantemente, o cidadão comum definha: só em Portugal 100 mil pessoas ficaram desempregados, as doenças mentais aumentaram e as outras, terrivelmente mortíferas (oncológicas e cardíacas), têm sido negligenciadas.
A par disto, os pequenos prazeres quotidianos são proibidos.
Beber um café, conversar com um amigo na rua, ler numa esplanada, dar um passeio pela cidade ao fim-de-semana, comprar um livro na livraria, oferecer um sorriso destapado, abraçar os amigos, beijar os amantes,… são actos subversivos e criminosos.
Pessoalmente, sou afortunada e, por isso, sinto o dever cívico de manifestar a minha preocupação relativamente àquilo que vai para além da sobrevivência básica; como humanos, temos de ansiar, em todas as circunstâncias, por mais do que isso…
Na verdade, nem é o confinamento per si que me perturba.
O clima de proibição e o incentivo à delação, em pleno século XXI, é que me desconcertam e retiram o ânimo.
Fui melhorando a minha casa e coloquei em prática alguns projetos adiados.
Entretive as mãos com tinta branca, reactivei a aparelhagem abandonada, coloquei os pensamentos em ordem e fui descobrindo vários poadcasts que não conhecia.
A Beleza das Pequenas Coisas de Bernardo Mendonça é um deles, com convidados tão excepcionais como Maria do Rosário Pedreira, valter hugo mãe, Dulce Maria Cardoso, João Tordo,…
Nos últimos dias, ouvi ainda o podcast “O Poema ensina a cair” de Raquel Marinho, com convidados como Eunice Muñoz, Capicua, Rui Vieira Nery ou Alexandre Quintanilha. Ouvir a Raquel Marinho dizer, com frequência: “A Poesia é a distância mais curta entre duas pessoas” restitui-me a fé nos humanos.
O episódio com Alexandre Quintanilha também foi terapêutico e profundamente comovente, sobretudo no momento em que ele partilhou este poema do libanês Khalil Gibran. Tal como Quintanilha, li muitas vezes Khalil Gibran, quando tinha vinte anos.
O poema “As Crianças” ganhou um novo sentido, agora que sou mãe há precisamente uma década.
Os vossos filhos [são] setas vivas projectadas
As crianças
E uma mulher que trazia
um menino ao colo disse:
-Fala-nos das Crianças.
E ele respondeu:
-Os vossos filhos
não são vossos filhos:
são filhos e filhas da própria Vida.
Vêm por vosso meio
mas não de vós;
e apesar de estarem convosco,
não vos pertencem.
Podeis dar-lhes o vosso amor,
mas não os vossos pensamentos
porque eles têm os seus.
Podeis acolher os seus corpos
mas não as suas almas:
porque as suas almas
habitam a casa do amanhã
que não podeis visitar,
nem sequer em sonhos.
Podeis esforçar-vos por ser como eles,
mas não tenteis fazê-los como vós.
Porque a vida não vai para trás,
nem se detém com o ontem.
Sois os arcos, e os vossos filhos
as setas vivas projectadas.
O Arqueiro vê o alvo no caminho do infinito,
e retêm-vos com o seu poder para que as setas
possam voar depressa para longe.
Que a vossa tensão na mão do Arqueiro
seja de Alegria.
Porque assim como Ele gosta da seta que voa,
também gosta do arco que fica.”
No dia das fotografias, nevou.
Corremos para a rua, esquecemo-nos da máscara em casa, brincámos no Rossio e comemos neve.
Foi o último dia em que me senti livre, dentro da cidade.
(A versão do poema de Khalil Gibran foi retirada dos cadernos de Poesia mais-que perfeita. Há várias décadas circulavam por Coimbra, pelas mãos de alguns estudantes, estas pequenas antologias; são da editora “A Mar Arte”, e a minha edição é de 1994. A coleção chamava-se “O Reino dos Loucos” e eu, sem noção de como era privilegiada, feliz e livre, era uma delas.)
Julio Cortázar (1914 – 1984), escritor argentino, é considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu tempo. Mestre no conto e na narrativa curta, a sua obra é apenas comparável a nomes como os de Edgar Allan Poe, Tchékhov ou Borges.
Não me lembro de ter lido algum texto de Cortázar.
De quantas vidas precisaríamos para conseguirmos ler todos os livros que desejamos?
Na página digital da livraria Bertrand, entrou-me Cortázar pelos olhos diretamente para o coração.
“Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.
“Como foi possível ao homo sapiens ultrapassar o limite de 150 indivíduos?
Como é que o homo sapiens conseguiu fundar cidades com dezenas de milhares de habitantes e impérios com centenas de milhões de súbditos?
Graças à ficção!“
Nunca tinha pensado nisso, mas faz muito sentido.
O segredo do nosso sucesso gregário reside na mitologia: um grande número de desconhecidos cooperam bem, se acreditarem nos mesmos mitos!
Não usamos a linguagem apenas para descrever o que se passa à nossa volta, mas também para inventar o que se passa à nossa volta. As ficções cercam-nos, nas suas formas mais saudáveis e artísticas.
Infelizmente, também nos perseguem nas suas formas mais perversas.
Quantas narrativas foram criadas por génios para nosso prazer?
Quantas narrativas foram/são inventadas para nos manipular, dominar, oprimir ou aniquilar?
São questões que continuam actuais.
“Toda a cooperação humana de larga escala depende de mitos partilhados que existem só no imaginário colectivo. Vale para uma tribo pré-histórica, uma cidade antiga, uma igreja medieval ou um estado moderno.
As ficções são instrumentos estruturantes nas religiões, nos estados ou até dos sistemas judiciais, mas é conveniente que não percamos a noção de que são meros instrumentos; não poderemos permitir que nos escravizem. Não teremos, no entanto, já passado essa linha vermelha?
Quantas vezes se confunde a realidade com as ficções que criámos?
Nem tudo é ficção, a realidade existe.
Quando alguém morre na guerra, morre realmente, mas muitas vezes em nome de uma ficção que nos venderam: a defesa de um país, de um povo, ou de um valor moral nobre propagandeado para justificar a violência armada ou opressora (democracia, liberdade, justiça, segurança, saúde,…).
“Como saber se o herói de uma história é real ou inventado?
Pergunta a ti mesmo: este herói pode sofrer?
Uma empresa, por exemplo, não sofre nem quando entra em falência: não tem uma mente, não consegue sentir dor, nem tristeza. Também uma nação não sofre, sequer quando perde uma guerra”, mas um ser humano pode morrer em nome de uma ficção que criaram para ele.