“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Desafio-te

Depois de períodos espinhosos, uma pandemia ou uma guerra, já assistimos, no passado, a uma retoma material e espiritual por parte dos povos:

Os loucos anos vinte do século XX são um exemplo desse fenómeno social.

Em Portugal, especificamente, vivemos uma loucura discreta.

Afinal, logo em 1928, houve um verdadeiro insano que assumiu a pasta das Finanças e, em 1932, o mesmo demente assumiu o país e queimou o que restava da alegria.

No entanto, os anos vinte ainda permitiram a nossa explosão modernista.

A minha admiração pelo Modernismo Português remonta ao ensino secundário e universitário.

Trata-se de uma geração de ruptura e desafio, o que seduz qualquer jovem.

Ainda hoje me fascinam: persigo filmes, exposições, biografias e documentários desta época.

Acho até que me apaixonei, aos dezoito anos, por esta fotografia de Santa Rita-Pintor.

Santa-Rita Pintor foi um dos organizadores da revista Orpheu e era o dinamizador da revista Portugal Futurista. Só existiu o número 1 desta última revista, uma vez que todos os exemplares foram apreendidos à porta da tipografia, devido ao seu teor “subversivo e obsceno”.

Nada pode ser mais inebriante do que este tipo de pormenores.

Quanto ao pintor Amadeo de Souza Cardoso, saltou de Manhufe para Paris, com a paleta debaixo do braço.

Aguardo, ansiosamente, pela estreia do filme sobre Amadeo de Souza Cardoso de Vicente Alves do Ó. Acredito que seja este ano.

A estreia do filme tem sido adiada por causa da pandemia.

Amadeo de Souza Cardoso morreu de gripe espanhola. Infelizes coincidências.

A obra de Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Sá Carneiro ou de Amadeo jorrou em rompantes criativos, aparentemente sem esforço e com uma originalidade genial e chocante para a época.

Sá Carneiro e Fernando Pessoa eram, socialmente, mais contidos.

Almada era extravagante e Amadeo era… pintor.

Muito me fascina a sua figura.

Decidido e sobranceiro.

Estes génios fitam-nos e interpelam-nos: E, tu, o que fazes?

Não queriam discípulos; queriam soldados para a sua revolução cultural.

São inspiradores!

Ainda hoje procuram soldados para esta batalha!

Eu alistei-me na sua milícia pacífica.

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Nuvens em pé

Finalmente, estamos a recuperar o espaço público.

Que bom que é ver os outros, sentir, cheirar, tocar, concordar, discordar, intervir, ouvir, observar, seguir, calar, e guardar tudo no fim.

Sempre precisei de silêncio e solidão e não tinha consciência de que me fazia falta a sensação de “fazer parte de”.

Basta sair de casa, observar ou ouvir uma conversa para que os outros me acrescentem.

Integro ou rejeito a diferença, mas reflito e cresço.

Talvez o sentido de comunidade também se desenvolva assim e nem precise de intervenções públicas estrepitosas.

Perante a forçada ausência do novo, devo uma parte da minha sanidade mental aos podcasts que fui/vou ouvindo, nomeadamente “O Poema ensina a Cair”, da autoria de Raquel Marinho.

Um dos últimos que ouvi teve como convidado Vicente Alves do Ó. Foram duas horas de conversa que me acompanharam e acenderam vários dias. Para além da obra, o realizador é um excelente contador de histórias e, através dele, conheci a poeta Cláudia R. Sampaio.

As redes sociais são enjoativas, mas gosto da ideia de comunidade virtual: ao longo destes meses, fui reunindo à minha volta vários nomes que me preenchem, de forma sublime, o pensamento.

Este poema da Cláudia R. Sampaio ainda me ilumina os dias.

Tragam-me um homem que me levante

com os olhos

que em mim deposite o fim da tragédia

com a graça de um balão acabado de encher

tragam-me um homem que venha em baldes,

solto e líquido para se misturar em mim

com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se

leve, leve, um principiante de pássaro

tragam-me um homem que me ame em círculos

que me ame em medos, que me ame em risos

que me ame em autocarros de roda no precipício

e me devolva as olheiras em gratidão de

estarmos vivos

um homem homem, um homem criança

um homem mulher

um homem florido de noites nos cabelos

um homem aquático em lume e inteiro

um homem casa, um homem inverno

um homem com boca de crepúsculo inclinado

de coração prefácio à espera de ser escrito

tragam-me um homem que me queira em mim

que eu erga em hemisférios e espalhe e cante

um homem mundo onde me possa perder

e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos

atirando-me à ilusão de sermos duas

novíssimas nuvens em pé.

in Ver no Escuro, Tinta da China.

O fotógrafo Vitorino Coragem tirou estas fotografias à poeta e eu trouxe-as daqui.


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Olho lírico

Sobrevivemos a um ano de teletrabalho e de isolamento.

Um ano inédito a convivermos ininterruptamente connosco, com o stress do trabalho, da vida doméstica, do medo, da saturação e do desânimo.

O teletrabalho, nos moldes excepcionais em que o vivemos, é duro, mas protegeu-nos de doenças e de outros desconfortos diários.

Não conhece, no entanto, a prerrogativa “fim de expediente”: como estamos em casa, os outros pressupõem que permaneceremos 24 horas disponíveis.

Até acredito que há pessoas que se aborrecem e se entretêm a trabalhar.

Não é o meu caso.

Desconfio que, quando desconfinarmos totalmente, as empresas e instituições esquecerão as vantagens do trabalho à distância e vão obrigar os trabalhadores a suportar reuniões enfadonhas e tarefas intermináveis que poderiam ser realizadas no conforto do lar.

Surgirão mudanças, no mundo laboral, depois da pandemia?

Preocupa-me o que tenho visto, embora já tenha lido perspectivas muito optimistas.

Para já, sempre que surgem reivindicações, estas são encaradas como inoportunas.

Que burguesia é esta que tem trabalho e tempo para reivindicar!?

Outra burguesa aqui se apresenta… outra que não sabe que as únicas ambições permitidas, hoje, são saúde e “pão na mesa”.

Como eu desejo que o “desconfinamento a conta-gotas” traga sonhos diluviais e inconvenientes!

Se vierem aí os loucos anos 20, “inebriantes, criativos, tumultuosos”, estou já disponível para viver cada minuto!

Aguardo.

Para já, sou uma telefuncionária, apagada, mortinha por deixar escapar o “olho lírico” para bem longe de casa.

Estou em contagem decrescente, mas ainda numa desoladora sintonia com o funcionário de António Ramos Rosa, na sua “vida às avessas a arder num quarto só”.

O Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

A fotógrafa Trisha Ward interpretou desta forma os tempos que andamos a viver: “The Art of Waiting” deu o mote ao editorial que eu trouxe daqui.