Na peça “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vivente, várias almas desfilam pelo Pugatório, tentando convencer o Anjo de que são merecedoras da eternidade no Paraíso.
A personagem aparentemente mais absurda é o Parvo.
Quando se dirige ao Anjo, repetindo o percurso de todas as personagens, responde da forma mais intrigante:
Anjo: Quem és tu?
Parvo: Samica alguém (talvez alguém).
Desde a adolescência, que me pergunto que resposta daria eu ao Anjo, se me encontrasse em semelhante situação. Décadas passaram, acumulei tantas experiências, leituras, aventuras, cobardias e bravuras que continuo sem encontrar solução.
Que resposta poderá ser mais humilde, lúcida e sábia do que a do Parvo?
Tento ter presente a lição do Parvo, quando sou elogiada, quando dou por mim com tiques de arrogância, quando cedo à tentação de menosprezar alguém que ideologicamente está distante de mim ou que não se consegue expressar da forma mais fluida.
Confirmo a superioridade do Parvo, quando sou confrontada com a soberba, com o egocentrismo, com a crueldade, e com a intolerância dos outros.
Provavelmente a sobranceria é o defeito que mais abomino… também em mim.
Lembrei-me do Parvo, quando li este poema de Emily Dickinson.
Melhor do que um “Alguém” só mesmo outro “Alguém”.
♥
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém – Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste – ser – Alguém!
Que pública – a Fama –
Dizer seu nome – como a Rã –
Para as palmas da Lama!
I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?
Then there’s a pair of us!
Don’t tell! they’d advertise – you know!
How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!
DICKINSON, Emily. Não sou ninguém. Poemas.
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