“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Rinocerontites

A forma furiosa como somos impelidos a viver torna-nos infelizes.

A aceleração constante do corpo e da mente provoca a autossabotagem individual e coletiva.

Quando estamos ansiosos e irascíveis, queremos um alívio rápido, quer este seja racional ou irracional. Ficamos incapazes de escolher e, geralmente, o consolo é arriscado e compulsivo: comida, compras, sexo, álcool, agressividade, programas televisivos acéfalos, … Vale tudo desde que anestesie.

Autossabotamos os sonhos e a vida até nos esgotarmos ou cairmos no irremediável.

A partir daí, estamos incapazes de organizar a casa e o mundo, ficamos socialmente à deriva.

Procuramos um culpado para a angústia, mal-estar, miséria ou frustração do fim do dia.

Tem de haver culpados para o que estamos a sentir: são os ricos, são os pobres, os que roubam, os que pedem, os de pele clara, os de pele escura, os que nos amam, os que nos odeiam, os famosos ou os desconhecidos, os próximos ou os distantes, … alguém tem de ser o responsável.

Esta subjugação ao relógio e ao metal, tão contranatura e insana, combate-se com rebeldia: pegar num livro é como carregar no botão de pausa e afrontar a engrenagem.

Se não accionarmos a pausa, misturar-nos-emos na massa ocupada, doente e ignorante: seremos facilmente dominados, enquanto corrermos como formigas ao sol.

Pessoas assim tornam-se autómatos e presas fáceis de rinocerontites: meras máquina que marcham atrás da mais ignóbil trombeta.

Eugène Ionesco, numa conferência realizada em 1961, esclarece:

“Pois estas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, de repente podem, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta, ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo delirante, por uma paixão violenta colectiva, por uma neurose popular.

As mais variadas rinocerontites, de direita e de esquerda, as mais variadas, constituem ameaças que pesam sobre a humanidade que não tem tempo de reflectir, de recuperar os sentidos ou o juízo.”

Texto retirado do livro: A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine.

Imagem: IGNANT.

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Distinto

Tomei consciência, há pouco tempo, de que a lei que descriminalizou a homossexualidade é de 1982!

“Durante quase 100 anos, o Código Penal português, através dos artigos 70º e 71º, entendia a homossexualidade como “prática de vícios contra a natureza” e a punição passava, entre outras, pelo “internamento em manicómio criminal” e pela “interdição do exercício de profissão”.

Durante a ditadura em Portugal, a sociedade idealizada pelo regime de Salazar, excluía todas as pessoas que constituíssem um “perigo moral”, entre as quais os homossexuais. Estas pessoas, acusadas de conduta imoral ou vadiagem, eram internadas por longos períodos em estabelecimentos específicos, com vista a uma “reeducação”.

Com a revisão do Código Penal em 1982, a homossexualidade é descriminalizada em Portugal, constituindo uma viragem na lei.”

Definitivamente, não percebo este medo de quem é diferente.

Compreendo o eventual espanto ou estranheza; percebo que nos aproximemos daqueles com quem temos mais pontos em comum, mas não aceito esta vontade de dominar e eliminar o outro.

Nuccio Ordine orienta-nos :

“Só o conhecimento de que estamos destinados a viver na incerteza, só a humildade de nos considerarmos seres falíveis, só a consciência de que estamos expostos ao risco do erro podem permitir-nos conceber um autêntico encontro com os outros, com aqueles que pensam de maneira diferente de nós.

Por estas razões, a pluralidade das opiniões, das línguas, das religiões, das culturas, dos povos, deve ser considerada uma riqueza imensa da humanidade e não um perigoso obstáculo.”

O mesmo nos diz Juan Ramón Jiménez, com a intensidade de Asier Etxeandia:

Distinto

Lo querían matar
los iguales,
porque era distinto.

Si veis un pájaro distinto,
tiradlo;
si veis un monte distinto,
caedlo;
si veis un camino distinto,
cortadlo;
si veis una rosa distinta,
deshojadla;
si veis un río distinto,
cegadlo…
si veis un hombre distinto,
matadlo.

¿Y el sol y la luna
dando en lo distinto?
Altura, olor, largor, frescura, cantar, vivir
distinto
de lo distinto;
lo que seas, que eres
distinto
(monte, camino, rosa, río, pájaro, hombre):
si te descubren los iguales,
huye a mí,
ven a mi ser, mi frente, mi corazón distinto.


Una Colina Meridiana (1942-1950)

Primeira citação: daqui.

Segunda citação: daqui.

Imagem: daqui.


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Considerações inúteis sobre o Amor

“Abandonar a pretensão da posse, saber conviver com o risco da perda, significa aceitar a fragilidade e a precaridade do amor. Significa renunciar à ilusão de uma garantia de indissolubilidade da ligação amorosa, tendo presente que as relações humanas, com as limitações e as imperfeições que as caracterizam, não podem prescindir da opacidade, das zonas de sombra, da incerteza. É por isso que, quando se procura a total transparência e a verdade absoluta no amor, se acaba por destruí-lo, se acaba por sufocá-lo num abraço mortal.”

” A posse, em todo o caso, configura-se como como um dos piores inimigos do amor. Encerrar o amor num círculo, condenando-o a viver numa prisão eterna, não servirá para protegê-lo das mutações e das metamorfoses que caracterizam as coisas humanas.”

Nuccio Ordine, no manifesto A Utilidade do Inútil, tece estas reflexões lúcidas sobre as relações românticas.

Nota: Como é óbvio, estas e outras considerações muito sábias sobre o Amor são completamente inúteis quando nos apaixonamos. Como toda a gente sabe, se esse fosse um estado de alguma razoabilidade e sensatez, não se chamaria paixão…

Paixão deriva do latim passio, -onis: sofrimento.

Fotografias: IGNANT.


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Pessoas infelizes

Eugène Ionesco, numa conferência realizada em 1961, faz um retrato dos nossos dias:

“Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas.

Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães.

Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido.

Em todas as cidades do mundo, é assim que acontece.

O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo.

Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte;

e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou autómatos, um país de pessoas infelizes, pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito;

onde não há humorismo, não há riso, há raiva e ódio.”

Sessenta anos depois, vários choques tecnológicos e vias rápidas digitais/de betão mais tarde, e assim continuamos… não só nas grandes cidades, mas também nas pequenas cidades do interior. Basta uma distração, uma fresta aberta no autopoliciamento e embarco com facilidade na caderneta do humano atarefado.

Por ansiedade ou frenesim natural, sou permeável à alta voltagem das urgências pessoais, familiares e profissionais do dia; por autoexigência excessiva planeio 1000 tarefas impossíveis de concretizar num só dia. Resultado? Fico exausta e frustrada.

Devido à minha cordialidade natural, percebi que os outros esperam de mim um autoajuste inesgotável e só se surpreendem quando não cumpro. Também por isso, tive de aprender a observar-me e a desacelerar aos primeiros sinais de stress descontrolado.

Sei que o percurso ainda é longo. Mas imperioso.

Para além de não querer adoecer com excesso de cortisol, nem consigo conceber a ideia de me tornar um autómato e, com as opressões quotidianas, não contemplar o céu, a Primavera, a arte e as pessoas bonitas!

As cidades das máquinas: IGNANT.

Texto de Eugène Ionesco: daqui.