“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Curadoria íntima

A minha pré adolescente borbulha autonomia e determinação, excepto à noite, antes de dormir, altura em que se permite procurar a proteção e a cumplicidade da Mãe.

Andamos há semanas acompanhadas pelo Ben e pela Rose, em grandes viagens por Minnesota, New Jersey e, por fim, numa grande aventura em Nova Iorque.

Temos viajado por espaços físicos e mentais de dois adolescentes determinados em encontrar-se a si próprios, quando os adultos mais próximos lhes falharam.

Valem-lhes outras pessoas e outros mundos.

Por esses motivos, este é um livro fantasioso, intenso mas também duro.

Rose
Desejo mais profundo de Rose

Aprendemos que, em 1869, Nova Yorque não tinha qualquer museu, ao contrário do que acontecia nas capitais da Europa ou mesmo em Filadélfia ou Chicago.

O jovem Theodore Roosevelt construiu um pequeno museu no alpendre de sua casa, onde organizava e catalogava as suas colecções; o pai de Theodore fez parte do movimento que fundou o Museu Americano de História Natural.

De facto, a maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Pretendia-se que quem os visse se maravilhasse, obviamente.

Ben, no final do século XX, construiu o seu próprio Museu das Maravilhas – ou mala das maravilhas pessoais – e lança a ideia de que qualquer um de nós pode construir o seu Armário de Maravilhas.

Ben defende que cada humano deve tornar-se curador da sua própria vida, zelando pelas suas referências e afectos, quer estas sejam físicas, quer sejam espirituais:

“Como será escolher os objectos e histórias que entrarão no nosso próprio armário?

Como é que apresentaríamos a nossa própria vida?

Talvez […] todos sejamos armários de maravilhas.”

A leitura nocturna já está no nosso armário

Ben e Rose são dois jovens surdos que enfrentam acrescidas dificuldades de comunicação, mas que conseguem estabelecer ligações fortes com os outros.

A noite no Queens Museum of Art é marcante.

Na verdade, este percurso das personagens por Nova Iorque está já registado na minha viagem de sonho.

Talvez os novos projectos sejam também uma forma de escapar ao enigma que acompanha Ben:

Estamos todos na sargeta, mas alguns de nós estão a olhar a estrelas“.

As personagens encontram as estrelas no cinema (mudo), nos museus por onde deambulam e nos segredos que desvendam na sua própria jornada.

Quanto às imagens, não ilustram a narrativa, constituem a narrativa.

Ando obsessivamente no encalço de Brian Selznick.

A edição portuguesa é da ASA.

A busca começou!

As estrelas aguardam-nos!

Nota: A maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Em Portugal, a este acumular desordenado de objectos maravilhosos (as “naturalia” e as “mirabilia”), por aristocratas, eruditos ou clérigos, chamava-se Gabinetes de Curiosidades.

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Voz combativa

A banalidade, a mediocridade e a insensibilidade propagam-se nas redes e nos órgãos de comunicação social.

Procura-se o rídiculo e o caricato das massas e o socialmente expectável das elites.

Talvez seja por isso que os comentadores dos canais televisivos estão ao nível dos programas de Domingo à tarde; tudo é coerente e condicente: são ex e actuais políticos, contabilistas e, na melhor das hipóteses, jornalistas.

Indigna-me o desinteresse que os editores dos canais revelam pelos filósofos, sociólogos, psicólogos, professores, historiadores, escritores, artistas, actores, … Os primeiros poderiam ajudar-nos a compreender e a salvar o mundo ou, pelo menos, a nossa alma; os últimos restituir-nos-iam a esperança, com um relato mais humano e poético do que nos rodeia.

Sempre que ouço um escritor, fico mais desperta e consigo distinguir a beleza das palavras e do pensamento.

Um povo desesperançado é desistente e alheado; a apatia é o nosso maior flagelo. Tudo nos é apresentado como muito maior do que nós, tão grande que nos paralisa e esmaga.

Lídia Jorge foi entrevistada por Bernardo Mendonça e, para além de falar do seu novo livro Misericórdia, comentou o mundo.

Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas.

É preciso estar com quem vive de migalhas.”

A entrevista é longa, mas tão lúcida que senti necessidade de reouvi-la.

Tive uma semana bem acompanhada por estas duas pessoas que salientam a nossa humanidade, ultrapassando a nossa sobrevalorizada animalidade.

Lídia Jorge refere a minha triste constatação inicial: “faltam-nos vozes combativas, formadas, éticas e não populistas”.

Os populismos propagam-se quando se acirram pobres contra pobres,

ou quando se aponta o dedo a quem tem fome (os que roubam a lata de atum),

ou quando se afasta do país quem nada tem (refugiados) e se acarinham corruptos (que são elevados a comentadores políticos ou presidentes).

Os populismos multiplicam-se quando não ficamos chocados e revoltados com quem não nos devolve o que nos deve (TAP), com os lucros que disparam nas empresas do retalho e petrolíferas.

Os populismos proliferam quando não há qualquer noção de responsabilidade social por parte de quem concretiza esquemas obscenos à custa da fome alheia.

Posto isto, tal como Sophia de Mello Breyner, em qualquer lugar do mundo, se os meus filhos passassem fome eu roubaria para eles.

“Há no mundo os grandes roubos. Eles estão aí. E esses não são tratados como ladrões. E a pessoa que rouba uma lata de atum é um ladrão. Temos de olhar para isto com outros olhos e não deixar que a sociedade atinja uma situação de penúria imensa.”