O mistério da linguagem poética está ligada ao seu lugar de escrita.
A prosa aprende-se, pratica-se, constrói-se.
O poema jorra de um local profundo e poderoso; somente o que tem essa origem radiante e obscura perdura.
Escrever um poema de amor é ainda mais enigmático.
Quando estamos apaixonados, o cérebro mirra e só nos surgem metáforas ridículas; as mesmas que ouvimos nas canções pirosas.
Quem quiser comprovar se está apaixonado pode ligar o rádio: se começar a identificar-se com as letras das baladas em voga, accione o botão de pânico: foi apanhado!
Como é que o poeta apaixonado escreve sem se distrair com a linha dos lábios ou com o formato do ombro do amado?
Fernando Pessoa anuncia que o poeta finge a dor que deveras sente, ou seja, que só regista a grande emoção após tê-la vivido, isto é, escreve quando a comoção acalma e o intelecto reinicia o sistema. Mas será que, não obstante a sua genialidade, Fernando Pessoa alguma vez foi fulminado por estes arrebatamentos?
Da paixão, nunca me resultou um poema, nem um verso; apenas ansiedade, o corpo mais esguio e… más decisões.
Já Borges, escreve este poema: cada verso com a força criadora de um livro.
E o final?
As causas
Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.
Imagem: Ignant
23 de Abril de 2023 às 15:25
Eu preciso da paixão para fazer qualquer coisa, mas não sou do tipo que se desprende da razão. Então equilibra-se bem tudo por aqui. A raiva me afeta de maneira mais terrível e ainda não me entendi. Recordo a minha mãe me pedindo para respeirar e começo a rir. Mas a paixão coloca as coisas nos seus devidos lugares, as cores, os sons. E como ouvir Chopin…
Ah, e Borges! O que dizer?
10 de Maio de 2023 às 21:39
O meu equilíbrio é sempre débil, por aqui, mas também sofro de iras. A paixão por pessoas é mais rara. Pelos livros e músicas é constante. Felizmente!