“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).

A voz do rouxinol

2 comentários

O mistério da linguagem poética está ligada ao seu lugar de escrita.

A prosa aprende-se, pratica-se, constrói-se.

O poema jorra de um local profundo e poderoso; somente o que tem essa origem radiante e obscura perdura.

Escrever um poema de amor é ainda mais enigmático.

Quando estamos apaixonados, o cérebro mirra e só nos surgem metáforas ridículas; as mesmas que ouvimos nas canções pirosas.

Quem quiser comprovar se está apaixonado pode ligar o rádio: se começar a identificar-se com as letras das baladas em voga, accione o botão de pânico: foi apanhado!

Como é que o poeta apaixonado escreve sem se distrair com a linha dos lábios ou com o formato do ombro do amado?

Fernando Pessoa anuncia que o poeta finge a dor que deveras sente, ou seja, que só regista a grande emoção após tê-la vivido, isto é, escreve quando a comoção acalma e o intelecto reinicia o sistema. Mas será que, não obstante a sua genialidade, Fernando Pessoa alguma vez foi fulminado por estes arrebatamentos?

Da paixão, nunca me resultou um poema, nem um verso; apenas ansiedade, o corpo mais esguio e… más decisões.

Borges, escreve este poema: cada verso com a força criadora de um livro.

E o final?

As causas

Todas as gerações e os poentes.

Os dias e nenhum foi o primeiro.

A frescura da água na garganta

De Adão. O ordenado Paraíso.

O olho decifrando a maior treva.

O amor dos lobos ao raiar da alba.

A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.

A Torre de Babel e a soberba.

A lua que os Caldeus observaram.

As areias inúmeras do Ganges.

Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.

As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.

Os passos do errante labirinto.

O infinito linho de Penélope.

O tempo circular, o dos estóicos.

A moeda na boca de quem morre.

O peso de uma espada na balança.

Cada vã gota de água na clepsidra.

As águias e os fastos, as legiões.

Na manhã de Farsália Júlio César.

A penumbra das cruzes sobre a terra.

O xadrez e a álgebra dos Persas.

Os vestígios das longas migrações.

A conquista de reinos pela espada.

A bússola incessante. O mar aberto.

O eco do relógio na memória.

O rei que pelo gume é justiçado.

O incalculável pó que foi exércitos.

A voz do rouxinol da Dinamarca.

A escrupulosa linha do calígrafo.

O rosto do suicida visto ao espelho.

O ás do batoteiro. O ávido ouro.

As formas de uma nuvem no deserto.

Cada arabesco do caleidoscópio.

Cada remorso e também cada lágrima.

Foram precisas todas essas coisas

Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Imagem: Ignant

Autor: Frasco de Memórias

http://frascodememorias.com

2 thoughts on “A voz do rouxinol

  1. Eu preciso da paixão para fazer qualquer coisa, mas não sou do tipo que se desprende da razão. Então equilibra-se bem tudo por aqui. A raiva me afeta de maneira mais terrível e ainda não me entendi. Recordo a minha mãe me pedindo para respeirar e começo a rir. Mas a paixão coloca as coisas nos seus devidos lugares, as cores, os sons. E como ouvir Chopin…

    Ah, e Borges! O que dizer?

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