“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Estações

Cada Inverno que passa custa-me mais do que o anterior.

A passagem do tempo não traz só sabedoria…

O frio e a escuridão, aliados a um estado de espírito tão pesado quanto os casacos em que me afundo, tolhem-me a vontade e o pensamento.

O Verão salva-me e renasço.

No Verão, é tudo fácil e leve.

Para seguir com esta determinação, só me faltam as calças de linho.

Várias calças de linho.

Ou sem ser de linho, mas em versão extra large.

Este outfit já testei: a minha missão nestas férias é recolher coletes junto dos homens da família que já não os usam.

Esta sobriedade de cores precisa de soltar-se com uns estampados de peças de estações passadas, conjugadas com uma cor que está ausente do meu armário: o vermelho.

Preciso de uma carteira vermelha ou amarela na minha vida, para me alinhar com o sol.

Uma cor para animar os básicos de onde não quero sair.

Continuo na minha difícil demanda de diminuir o consumo desenfreado e reabilitar peças dos anos anteriores, através de acessórios.

Uma túnica de linho e um blazer de linho talvez se justifiquem: são básicos, certo?

A necessidade do vestido branco já dura há anos: aquele vestido que não parece de praia nem de dormir.

E esta sou eu daqui a 10 anos, se conseguir manter o peso, mas essa é outra conversa…

As imagens são do Pinterest.

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Intersecção

Vivemos num tempo de mudanças rápidas.

Como em todos os períodos de transição do padrão social, há hesitações, receios, radicalismos e conflitos. Carecemos, portanto, de uma dose extra de humildade e temperança.

Sem o entendimento de que as feridas são profundas, não conseguiremos evoluir; sem a aceitação de que não somos perfeitos, não conseguiremos prosseguir.

As feridas foram provocadas por séculos de discriminações diversas.

Na verdade, a balança pendeu para um dos lados ininterruptamente: foram tempos violentos e cruéis para as mulheres e para as minorias.

Metade da população oprimiu a outra, durante os últimos séculos: basta consultar os direitos das mulheres de há 60 anos e percebemos que todos os preconceitos foram legislados e acolhidas pelas famílias que se queriam sossegadas e convencionais.

Nas últimas décadas, no Ocidente, as discriminações passaram a ser ilegais, mas não se alteram mentalidades por decreto.

Basta visitar o Portal da Violência Doméstica para o comprovar.

São números oficiais de Portugal, mas sabemos que, enquanto humanidade, temos ainda uma longa jornada.

A discriminação com base no sexo, na idade, na etnia, na religião, na orientação sexual, na deficiência e na pobreza continua a existir. Por esse motivo, a minha cidadania é atenta e ativa.

No entanto, pelas cicatrizes históricas, pela condição ainda vulnerável da mulher, pela mentalidade retorcida e medieval que ainda vigora em muitas cabeças, o meu feminismo é combativo, orgulhoso e é interseccional, uma vez que me preocupo com todas as mulheres que não são respeitadas ou tratadas com dignidade.

Os números oficiais são evidentes, mas há situações vergonhosas e escondidas e há situações dúbias.

Existem, também, oportunismos: a desonestidade não tem género, nem idade, etnia ou religião.

Mas não é por causa da exceção ou de falsos testemunhos que a regra se apaga. Não é por haver calúnias que deixa de ser essencial a denúncia.

Entretanto, à nossa volta, os ânimos exaltam-se a partir de qualquer rastilho.

Vivemos atritos quase diários: a balança pende radicalmente para qualquer um dos pratos da balança e os fundamentalismos inflamam as redes sociais a propósito de tudo e de nada. Acredito que tal durará enquanto não atingirmos o equilíbrio desejado.

Vivemos este estranho período de sensibilidades expostas, mas talvez esta seja uma excelente oportunidade para pensarmos antes de falarmos; talvez estejamos a aprender a viver em conjunto de forma mais civilizada e, para isso, tenhamos de reaprender a falar e a agir nesta nova configuração.

É difícil? Andamos mais desconfortáveis? Somos menos espontâneos?

Talvez, mas é o preço da evolução.

Se não queremos o mundo fossilizado dos nossos avós, temos de questionar frases feitas, corrigirmo-nos e reaprender, por nós próprios, as grandes certezas, até chegarmos a um novo equilíbrio das balanças.

O meu feminismo não é um equivalente do machismo, porque não pretende atacar o sexo masculino; pretende a plena igualdade entre humanos dos vários géneros.

O meu feminismo sabe de onde vem e é plenamente grato a todas as feministas que o antecederam.

O meu feminismo quer que sejamos mais corretos e generosos e que não exploremos a fraqueza do outro até sangrar.

O meu feminismo acolhe o conceito de sororidade, porque preza muitíssimo a amizade entre as mulheres, não menosprezando, todavia, com essa afeição, a presença masculina na minha vida.

O meu feminismo inclui todos os homens, aliados na luta, que têm também a responsabilidade de construir um mundo mais justo e pacífico.

O meu feminismo é abrangente ou interseccional, porque não admite quaisquer discriminações e percebe que há percursos com mais obstáculos do que o meu.

O meu feminismo é pacífico mas firme, porque não quer violência, mas não permite que o calem.

Destes e de mais feminismos falou Isabela Figueiredo na entrevista a Bernardo Mendonça, A Beleza das Pequenas Coisas. É sempre uma lição ouvi-los.


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Neighborhood

Depois de ter sido mãe, ganhei consciência da importância de zelarmos pelos nossos vizinhos e dinamizarmos um espírito comunitário, no local onde vivemos.

Iniciei-o na Figueira da Foz e trouxe-o para Estremoz.

No entanto, a zona antiga de Estremoz, onde vivo, não escapa à gentrificação.

Os edifícios históricos foram reabilitados e temos agora um bistrô, uma gelataria artesanal, um hotel com rooftop e um restaurante para a classe alta. Os vizinhos mais velhos morreram ou mudaram-se e, neste momento, temos esta chiqueza na praça, alguns serviços e pouquíssimos vizinhos. Por outro lado, o parque automóvel, embora intermitente, é de fazer inveja… a quem aprecia máquinas.

Apesar da questão da gentrificação ser discutida em Londres há anos, sobretudo com o caso do bairro East End, fiquei com a impressão de que ainda há bairros que escapam a esta descaracterização da paisagem urbana e humana em Londres.

Em East Dulwich, onde fiquei, senti-me num bairro londrino e li, nos roteiros, que o bairro mantém o “villagey feel“.

Vi lojas discretas, restaurantes de bairro e poucos turistas.

A 30 minutos de autocarro do centro de Londres, esta zona foi uma excelente surpresa.

Há anos que recorro ao Airbnb.

Gosto de passar horas a ver fotografias e a ler as críticas.

Este rés do chão independente de uma família londrina encantou-me de imediato.

Bem mais bonito do que nas fotos, mas também mais pequeno, o apartamento fez-me pensar como uma família consegue viver numa casa tão minúscula! É francamente espaçosa para passar uns dias, mas seria um desafio para o dia-a-dia de uma pessoa que está longe de ser minimalista.

Esta é, relativamente a um hotel, a grande vantagem do Airbnb: perceber como vivem os nativos, ouvir as suas sugestões à margem de recomendações turísticas e sentir o seu dia-a-dia.

No fundo, é esta a grande vantagem de partir numa viagem: agarrarmos a incrível oportunidade de ver outras possibilidades de ser pessoa.

Semanalmente, há mercado neste bairro.

Outra grande surpresa de Londres foi a alimentação.

Há duas décadas, tive uma experiência angustiante no Reino Unido.

Temia, agora, pelo meu almoço e, sobretudo, pela minha dose diária de cafeína.

Tudo o que comi, desta vez, foi delicioso, embora absurdamente caro.

Andámos entre o Spinach, a pizzaria Franco Manca e a Boulangerie do bairro.

O café também me saiu excelente: double expresso.

Estas fotografias mais mundanas foram todas tiradas pela Beatriz que já anda com um telemóvel.

Finalmente, diz ela!

Que aflição, digo eu.


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Caleidoscópio

Londres é uma cidade múltipla:

Intensa e vibrante.

Noturna e frenética.

Monástica e protocolar.

Descontraída e acolhedora.

E muitos outras que eu não conheci em 5 dias de viagem.

No início deste ano letivo, a Beatriz pretendia conhecer a faceta académica da capital, através de um projeto ousado que a diretora de turma queria implementar na escola. Entretanto, intensificou-se a crise, disparou a inflação e manteve-se a especificidade de vivermos numa região muito desfavorecida do interior alentejano, onde a maior parte das famílias contam os euros e não os sonhos.

Prometi à Beatriz que a viagem iria concretizar-se, ainda que tivéssemos de abdicar de outros projetos familiares.

Secretamente, planeava reencontrar o cenário dos videoclips punks da minha adolescência, lá nos perdidos anos 80, entre DrMartens e cristas rebeldes.

Esta é ainda a luz de Lisboa; não é a toa que é célebre.

A atmosfera a Norte é industrial e dramática.

O Tamisa já não é o “Great Stink” do século XIX, mas não conserva o romantismo de outros rios famosos.

Capital desde o século XI, apesar da destruição quase total no Grande Incêndio do século XVII (e dos bombardeamentos durante a Segunda Guerra Mundial), Londres exala a vitalidade e o cosmopolitismo que sempre a fez ressurgir.

O bulício é inebriante e, simultaneamente, acolhedor.

Toda a diversidade individual tem espaço. Apesar da sobrelotação do centro, senti que a pluralidade cultural é a maior riqueza da cidade.

São muitos os estímulos, sobretudo para quem, como eu, gosta de observar e tem uma enorme curiosidade acerca dos outros.

No meu velhinho Guia American Express, li que Picadilly (a principal artéria de West End) já se chamou Portugal Street.

O Soho aparece descrito nos roteiros como o local das ruas enérgicas e o epicentro da vida diurna e noturna. É magnético.

À noite, os jovens correm pela cidade em grupos alegres. Nas estações, li vários avisos divertidos e ilustrados a avisá-los de que não eram canguros e que era proibido correr nesses locais públicos. Identifico-me muito com este tipo de humor, já desde a Britcom dos serões de sábado do milénio passado, na RTP2.

Nem com o Guia do American Express consegui entender o Metro de Londres, mas fiquei compensada com a rede de autocarros. A aplicação Maps.me indica claramente o local das paragens e o número do autocarro, assim como o tempo que cada um demora a chegar.

O teatro inglês nasceu no século XVI e nota-se esta devoção pela cidade: nas tragédias e nos musicais baseados em todos os sucessos de que nos possamos lembrar.

Não explorámos a versão adulta, mas estivemos presentes na juvenil: Matilda, o momento alto das férias para a Beatriz. Apesar de não ser apreciadora de musicais, também fiquei impressionada com o rigor e profissionalismo de atores/cantores/bailarinos tão pequenos (que nunca recorrem ao playback, ao contrário do que acontece com alguns profissionais de renome).

O Museu de História Natural também foi a escolha da Beatriz.

Percebi que é muito fácil e prático reservar os bilhetes com antecedência. As entradas na maior parte dos museus são gratuitas, mas as filas para o levantamento dos bilhetes é interminável. Com reserva online, mediante uma doação simbólica, a entrada é VIP.

Os bairros menos movimentados da cidade ainda mantêm aquela patine imaginária do filme “Notting Hill”.

O Convent Garden desorientou o meu lado consumista, mas como só visitei este mercado no último dia, já não tinha como me perder.

Esta não foi a viagem introspetiva da Noruega;

também não encontrei os punks da minha adolescência: talvez andem a passear os filhos por cidades europeias e tenham rapado a crista, mas foi uma viagem que deu mais mundo à minha filha e…

à mãe da minha filha que fica, por vezes, demasiado fechada numa cidade do interior alentejano.

Para a semana ainda vou rever o meu bairro preferido e a experiência de alojamento.


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A voz do rouxinol

O mistério da linguagem poética está ligada ao seu lugar de escrita.

A prosa aprende-se, pratica-se, constrói-se.

O poema jorra de um local profundo e poderoso; somente o que tem essa origem radiante e obscura perdura.

Escrever um poema de amor é ainda mais enigmático.

Quando estamos apaixonados, o cérebro mirra e só nos surgem metáforas ridículas; as mesmas que ouvimos nas canções pirosas.

Quem quiser comprovar se está apaixonado pode ligar o rádio: se começar a identificar-se com as letras das baladas em voga, accione o botão de pânico: foi apanhado!

Como é que o poeta apaixonado escreve sem se distrair com a linha dos lábios ou com o formato do ombro do amado?

Fernando Pessoa anuncia que o poeta finge a dor que deveras sente, ou seja, que só regista a grande emoção após tê-la vivido, isto é, escreve quando a comoção acalma e o intelecto reinicia o sistema. Mas será que, não obstante a sua genialidade, Fernando Pessoa alguma vez foi fulminado por estes arrebatamentos?

Da paixão, nunca me resultou um poema, nem um verso; apenas ansiedade, o corpo mais esguio e… más decisões.

Borges, escreve este poema: cada verso com a força criadora de um livro.

E o final?

As causas

Todas as gerações e os poentes.

Os dias e nenhum foi o primeiro.

A frescura da água na garganta

De Adão. O ordenado Paraíso.

O olho decifrando a maior treva.

O amor dos lobos ao raiar da alba.

A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.

A Torre de Babel e a soberba.

A lua que os Caldeus observaram.

As areias inúmeras do Ganges.

Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.

As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.

Os passos do errante labirinto.

O infinito linho de Penélope.

O tempo circular, o dos estóicos.

A moeda na boca de quem morre.

O peso de uma espada na balança.

Cada vã gota de água na clepsidra.

As águias e os fastos, as legiões.

Na manhã de Farsália Júlio César.

A penumbra das cruzes sobre a terra.

O xadrez e a álgebra dos Persas.

Os vestígios das longas migrações.

A conquista de reinos pela espada.

A bússola incessante. O mar aberto.

O eco do relógio na memória.

O rei que pelo gume é justiçado.

O incalculável pó que foi exércitos.

A voz do rouxinol da Dinamarca.

A escrupulosa linha do calígrafo.

O rosto do suicida visto ao espelho.

O ás do batoteiro. O ávido ouro.

As formas de uma nuvem no deserto.

Cada arabesco do caleidoscópio.

Cada remorso e também cada lágrima.

Foram precisas todas essas coisas

Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Imagem: Ignant


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Fast Heroes

Um herói é um humano que se eleva e toca na esfera dos deuses.

Só alguns de nós conseguem, muito pontualmente, ultrapassar as paixões baixas (inveja, ciúme, ganância de poder, ambição material) e lutar por valores e interesses colectivos.

De resto, perante a misteriosa complexidade da vida, procuramos referências, tanto quanto ansiamos por validação.

Na infância, é premente esta necessidade de criarmos heróis e, por outro lado, de sermos amados pelos adultos.

Na adolescência, suspiramos por exemplos de rebeldia e confronto, geralmente idealizações de pessoas que nem conhecemos, já que o nosso sentido crítico se agudiza contra os adultos que nos rodeiam. Quanto à validação, é perigosamente feita pelos pares, através das mais absurdas tentativas de aceitação.

Chegamos a adultos e pouco muda.

No passado, os heróis eram construídos para nós: desde Ulisses ou Aquiles, na Antiguidade, até aos nossos navegadores quinhentistas, aos galardoados militares, aos combatentes desconhecidos (vítimas da crueldade e ambições alheias), aos chefes de Estado: todas as hipérboles foram ostentadas a fim de legitimar a política de um país isolado e agrilhoado. Para que não escapassem pontas soltas, os livros da escola repetiam a cartilha e formavam o povo. Quanto à validação, estava na classe social imediatamente mais favorecida, na família, no chefe, no vizinho. Se se vislumbrasse um risco fora do desenho, incorria-se no ostracismo ou numa denúncia anónima.

No presente, vivemos um paradoxo: os heróis não o são. Na verdade, já não têm de ser autores de feitos extraordinários – só precisam de ter os valores mais creditados: dinheiro ou visibilidade – o primeiro obtido maioritariamente através de roubos (i)legais; o segundo resultante da difusão nas redes sociais (ser influencer é o suficiente).

Em relação à validação, ela encontra-se na despudorada exibição de bens materiais e, de forma coerente, está também no mundo digital, refletida em likes e visualizações.

Talvez já não nos fabriquem heróis, mas é degradante que estejamos tão pouco exigentes.

Apreciamos aqueles que estão envolvidos nas paixões mais rasteiras e não os raros que se superam eticamente/intelectualmente/esteticamente/afetivamente/socialmente.

Reverenciamos os que são parecidos connosco, em vez de procurarmos a inspiração e referência nos que são melhores do que nós.

Sem subidas, não teremos quedas, mas também não sairemos do lodo.

É preciso um colectivo esclarecido para uma grande construção.

Ao contrário do que nos venderam no passado, nenhum herói surge e edifica sozinho.

Neste poema de Bertolt Brecht, confirmamos que os triunfos são obra de quem carrega os heróis nos ombros.

Perguntas de um operário letrado

Quem construiu a Tebas das Sete Portas?
Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que carregaram as rochas?
E a Babilônia destruída tantas vezes?
Quem a reconstruiu de novo, de novo e de novo?
Quais as casas de Lima dourada
abrigavam os pedreiros?
Na noite em que se terminou a muralha da China
para onde foram os operários da construção?
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a “Invencível Armada” naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?

Tantas histórias.
Tantas perguntas.

A fotografia é de Kin Coedel e faz parte da coleção  ‘Dyal Thak’ , que significa em tibetano conexão ou “mutual ties” ou fios comuns.

Uma excelente tertúlia acerca dos heróis está disponível no meu programa de eleição: Original é a Cultura.


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Corpo

Tiffany ad Le Book

Meu Corpo Teu

Não me ensinaste a envelhecer
Mãe
Nem reparei sequer que envelhecias
Uma vez impacientei-me por não me ouvires bem
e tu disseste simplesmente: “Não vês que a tua Mãe
está a ficar velha?!”
Não via nunca tinha reparado protestei
não aceitei
Só agora compreendo
Agora que envelheces com meu corpo teu
ou que envelheço com teu corpo meu
Habituei-me a ver-te correr ligeira
à frente dos automóveis
a atravessar as ruas fora do risco dos peões
E de repente
sem avisar
a velhice caiu-me em cima

Envelhecias sem reparar
ou não querias pensar nisso
ou não consentias ao corpo esse vagar?

Agora aprendo à minha custa
sem a tua companhia
o que é envelhecer
Se calhar só através desta escrita
me vais ensinando
o que nunca aprendeste

Teresa Rita Lopes


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Pequenas Virtudes

Natalia Ginzburg nasceu em Palermo, em 1916.

No ensaio que dá o nome ao livro, descreve um modelo de educação assente nas grandes virtudes em detrimento das pequenas virtudes.

O que são as grandes virtudes?

Como distingui-las das pequenas?

“No que se refere à educação dos filhos, penso que lhes devem ser ensinadas não as pequenas virtudes, mas as grandes.

Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença pelo dinheiro;

não a prudência, mas a coragem e o desprezo do perigo;

não a astúcia, mas a franqueza e o amor da verdade;

não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação;

não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de conhecer.”

Neste ensaio de Natalia Ginzburg, surgem ainda reflexões que subscrevo e procuro alcançar na relação com a minha companheira de há 12 anos. Não sigo uma cartilha moralista, mas espero sempre que, pelo exemplo e pelos temas discutidos, a Beatriz interiorize a importância de agir com ética.

“A educação não é mais do que uma certa relação que estabelecemos entre nós e os nossos filhos, um certo clima em que florescem os sentimentos, os instintos, os pensamentos.”

“Hoje que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos […] é necessário que nos revelemos, nesse diálogo, tal como somos: imperfeitos; confiantes em que eles, os nossos filhos, não se nos assemelhem, sejam mais fortes e melhores do que nós.

“[…] eles devem saber que não nos pertencem, mas que nós sim lhes pertencemos“.

“Talvez a única possibilidade real que temos de lhes prestarmos algum auxílio na busca de uma vocação, é termos nós próprios uma vocação, que conhecemos, amamos e servimos com paixão: porque o amor pela vida gera amor pela vida.”

Fotografias: do fotógrafo ganense, Prince Gyasi, IGNANT


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Ana Mushell

Todos os anos escolho a minha ilustradora de eleição, geralmente logo nos primeiros meses do ano.

As pessoas impacientes e dadas a arrebatamentos não têm a serenidade necessária para aguardarem por Dezembro para fazerem balanços ponderados…

A ilustradora espanhola Ana Mushell chegou até mim através da minha amiga Carmen.

São ilustrações que estão em perfeita sintonia com o frio introspectivo do Inverno.

Ilustrações que reflectem a melancolia de Janeiro e de um Fevereiro que se adivinha eriçado.

Se a melancolia, a solidão e o silêncio são vitais para a manutenção da minha sanidade mental, também é verdade que precisam de se contrabalançar com convívio (muito) selectivo, estímulo mental e paisagens em movimento.

Por enquanto, tem prevalecido a “tristeza hermosa”, acompanhada de Billie Holiday, um livro, abraços apertados e a salamandra.

Este é o Instagram imperdível de Ana Mushell.

Depois desta pausa da natureza, em que tudo acontece subterraneamente, anseio pelo iminente florescimento exterior!


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Filas de Sonhos

Cautelosamente, vou mostrando à minha filha de 11 anos notícias do mundo.

Coloco o meu filtro, já que os noticiários são cada vez mais grotescos e cospem horrores em catadupa, sem qualquer reflexão prévia ou posterior. Desconheço as consequências desta prática diária à hora de jantar: desesperança paralisante, insensibilidade empática ou ataraxia social?

Os campos de refugiados envergonham-nos enquanto espécie e geram questões, no conforto do sofá, a que eu não consigo responder.

Como é que as crianças passam anos naqueles campos?

Não há respostas que consigamos dar aos nossos filhos, especialmente se pensarmos que integrámos 4,8 milhões de refugiados ucranianos em menos de um ano. Ainda bem que o fizémos, mas esse feito louvável evidencia a inércia e o cinismo evidentes em situações semelhantes.

Sou incapaz de contar à Beatriz o que aconteceu no dia 2 de setembro de 2015 com o pequeno Alan.

O menino tinha 3 anos.

Não consigo explicar-lhe que vivemos num mundo, onde estas tragédias acontecem, sob o olhar gélido dos adultos.

O livro Filas de Sonhos nasceu da promessa de Rita Sineiro, perante a imagem da criança síria, na orla da Turquia.

Conversei muito com a Beatriz enquanto o líamos.

Sobre a guerra que vivemos na Europa e sobre as outras que, embora distantes, nos matam todos os dias.

Falámos de proibições, medos, muros e fronteiras, mas também de generosidade e altruísmo.

Indignámo-nos contra as portas fechadas e os campos de tendas onde tudo falta e onde se espera pelo carimbo azul que permitirá retomar a vida.

Encolhemo-nos perante situações desesperadas e decisões fatais.

Mas nunca consegui contar-lhe acerca do fim do pequeno Alan que deu à costa numa praia da Turquia.

Igor Lebreaud escrevou e encenou a peça “Aqui, onde acaba a estrada”.

Li e relembrei outros momentos vergonhosos da nossa humana existência:

“Espanha, 2014. Polícia dispara balas de borracha e gás lacrimogéneo contra imigrantes que tentam chegar a nado à
praia de El Tarajal, em Ceuta.


Hungria, 2015. Governo conclui a instalação de uma vedação de arame farpado com 41 quilómetros, ao longo da fronteira com a Croácia, para travar o fluxo de imigrantes. Uma vedação semelhante, com 175 quilómetros, havia já sido edificada na fronteira com a Sérvia.


Itália, 2019. Governo proíbe durante três semanas a atracagem do navio Open Arms, que transportava 147 pessoas resgatadas no Mar Mediterrâneo, ao largo da costa da Líbia.


Reino Unido, 2022. Primeiro-ministro anuncia plano para deportar para o Ruanda imigrantes que entrarem ilegalmente no país.


Espanha, 2022. Mais de trezentos imigrantes são agredidos enquanto agonizam ao sol, numa vala encostada à vedação que haviam saltado, entre Marrocos e Melilla. Primeiro-ministro elogia actuação das polícias marroquina e espanhola.


Quando nos lembramos destes acontecimentos, sabendo que são apenas exemplos, percebemos que o conceito de “Europa-fortaleza” está longe de ser uma metáfora. Entendemos melhor quais são os “valores europeus” defendidos por quem governa os países da “Europa civilizada”. Torna-se uma evidência que “a guerra” não começou agora, que “a guerra” não acabou nunca. Apenas parecia mais longe, enquanto as vítimas não eram tidas como “a nossa gente”, enquanto “não atentava contra o nosso modo de vida, o nosso poder de compra e a nossa segurança (incluindo económica).


Talvez um dia alguém peça desculpa pelo que hoje está a ser feito, em nosso nome e por governos que elegemos. Entretanto, o portão está fechado e há gente a morrer.”

Este é um excerto da folha de sala da peça “Aqui, onde acaba a estrada”, levada à cena pela Escola da Noite.

Assisti a peça em Évora e recordei a função do teatro: alertar-nos para o poder da indignação individual e colectiva, num tempo de banalização do cruel e abjecto.

Devemos isso aos nossos filhos.