“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


Deixe um comentário

O pânico é o abutre que se senta no teu peito

Não sei quando voltaremos a sair livremente.

Estamos presos nos concelhos, em casa e, sobretudo, num espaço psicológico de opressão, desconfiança e medo.

Alguns estão pior: ficaram confinados em espaços interiores de moralismo, intolerância, policiamento, agressão, condenação e delação. Sinto profunda piedade por estes últimos, mas tenho por hábito conservar uma distância muito superior a 3 metros de mentes tóxicas .

Não saberemos tão cedo se há motivos reais para “os vários aprisionamentos” a que temos sido sujeitos.

Julgo que só daqui a dez anos vislumbraremos alguma luz. Por agora, cada um tem as suas motivações, teorias e certezas.

Tem sido assim em todos os tumultos históricos: muito mais tarde, descobrimos parte da enorme encenação que nos contaram.

Neste milénio, recordo-me do que aconteceu durante a sanguinária invasão do Afeganistão (mais de 30 mil civis afegãos mortos – BBC) ou da obscena demolição do Iraque (e as armas de destruição maciça que nunca apareceram!?).

Vou vivendo com o cuidado e com a serenidade possível.

Tento não cometer muitos atos de desobediência civil (apesar da minha natureza insurrecta), mesmo quando vejo que muitas das medidas são de natureza política e aleatória.

Faço um esforço enorme para não me envolver demasiado na narrativa atual. Não tenho a pretensão de saber onde está a verdade, nesta altura em que todos são cientistas de bancada, mas já vivi o suficiente para não ser totalmente crédula.

Juan Vicente Piqueras escreveu “Instruções para sair do deserto”.

Os desertos que mais me preocupam são, sem dúvida, os interiores; esses que estão a crescer dentro de nós: os que nos impedem de empatizar e solidarizar; os que nos impelem a atacar e culpar ferozmente “os outros” por uma pandemia mundial.

Desses desertos temos de sair a todo o custo, distinguindo bem as “gaivotas dos abutres”.

De outra forma, perderemos a nossa humanidade, dividir-nos-emos, enfraquecer-nos-emos e só sobreviverão os necrófagos. Esses, impiedosos que são, não nos deixarão os ossos!

Para sair deste íntimo deserto
é preciso saber que não tem saída.

Esperar, caminhar, desesperar,
cultivar a paciência até perdê-la
quando todo tu sejas já pura paciência.

É preciso sentir que o deserto és tu mesmo,
recordar com irónica ternura
aqueles dias só agora felizes
em que tivemos fé nas miragens.

Já não há mais coração do que aquele que ardeu.

Não há maneira nem água nem amanhã
nem oriente nem ocidente. Não há estrelas
que te digam onde, que te indiquem
messias ou saídas que não existem

até que um dia encontres diante de ti

as tuas pegadas de outros anos e

compreendas que chegaste ao teu passado

que já estás onde estavas

que morrerás de sede

Olha na areia as sombras dos abutres que julgavas gaivotas”

A imagem é do blog sempre inspirador IGNANT.

O título do post é uma frase do livro O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida Carvalho.

Advertisement


3 comentários

Razão

Por todo o lado há cada vez mais pessoas tão cheias de certezas e tão prontas a impô-las a quem quer que lhes passe pela frente!
É cansativo e saturante ouvi-las.
Eu também tenho as minhas tentações, mas ando a treinar-me.
Na maior parte das vezes, não vale a pena falar com quem não quer ouvir;
mas também não vale a pena ouvir quem só quer falar.
ignant-photography-luca-anzalone-
Tão simples, belo e verdadeiro.

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

 

Imagem: IGNANT.


Deixe um comentário

Maduro

waif-selfi-MissMoss

Dá a surpresa de ser

Dá a surpresa de ser

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

Fernando Pessoa, 1930

waif-selfi-MissMoss2019


1 Comentário

Boca

Só os poetas devem escrever sobre o Amor.
Nós ficamos gratos por senti-lo.
E por ler o que os poetas escrevem.
♥ ♥
A BOCA AS BOCAS
                                                                                                                                                                 
Apenas
uma boca. A tua Boca
Apenas outra , a outra tua boca
É Primavera e ri a tua boca
De ser Agosto já na outra boca 
Entre uma e outra voga a minha boca
E pouco a pouco a polpa de uma boca
Inda há pouco na popa em minha boca
É já na proa a polpa de outra boca. 
Sabe a laranja a casca de uma boca
Sabe a morango a noz da outra boca
Mas sabe entretanto a minha boca
                                                                                                                                                                 
Que apenas vai sentindo em sua boca
Mais rouca do que a boca a minha boca
Mais louca do que a boca a tua boca.
                                                                                                                                                                 
David Mourão-Ferreira
IGNANT Amanda Charchian
Fotografia de Amanda Charchian, no IGNANT.


3 comentários

Não!

Vivemos na sociedade do “Sim”.

 

Os expeditos aprendem cedo a usar meias-palavras, a ludibriar, a prometer e a não cumprir, a mentir.

Os mais bondosos aprendem a violentar-se, a decepcionar-se e a dizer “Sim!”.

O “Sim!” parece ser a resposta, quando por todo o lado está espalhado o medo:

diz “Não” e és fraco, não serves; diz “Não”, perdes o emprego, diz “Não” e ficas sozinha para sempre.

Diz “Sim!” e a ordem fica restabelecida, com filas de submissos obedientes.

Este poema foi escrito, em 1956, por Vinicius de Moraes.

No vídeo, surge dito por Mário Viegas, um homem que sabia dizer “Não”.

O operário em construção

Era ele que erguia casas 
Onde antes só havia chão. 
Como um pássaro sem asas 
Ele subia com as casas 
Que lhe brotavam da mão. 
Mas tudo desconhecia 
De sua grande missão: 
Não sabia, por exemplo 
Que a casa de um homem é um templo 
Um templo sem religião 
Como tampouco sabia 
Que a casa que ele fazia 
Sendo a sua liberdade 
Era a sua escravidão. 

De fato, como podia 
Um operário em construção 
Compreender por que um tijolo 
Valia mais do que um pão? 
Tijolos ele empilhava 
Com pá, cimento e esquadria 
Quanto ao pão, ele o comia… 
Mas fosse comer tijolo! 
E assim o operário ia 
Com suor e com cimento 
Erguendo uma casa aqui 
Adiante um apartamento 
Além uma igreja, à frente 
Um quartel e uma prisão: 
Prisão de que sofreria 
Não fosse, eventualmente 
Um operário em construção. 

Mas ele desconhecia 
Esse fato extraordinário: 
Que o operário faz a coisa 
E a coisa faz o operário. 
De forma que, certo dia 
À mesa, ao cortar o pão 
O operário foi tomado 
De uma súbita emoção 
Ao constatar assombrado 
Que tudo naquela mesa 
– Garrafa, prato, facão – 
Era ele quem os fazia 
Ele, um humilde operário, 
Um operário em construção. 
Olhou em torno: gamela 
Banco, enxerga, caldeirão 
Vidro, parede, janela 
Casa, cidade, nação! 
Tudo, tudo o que existia 
Era ele quem o fazia 
Ele, um humilde operário 
Um operário que sabia 
Exercer a profissão. 

Ah, homens de pensamento 
Não sabereis nunca o quanto 
Aquele humilde operário 
Soube naquele momento! 
Naquela casa vazia 
Que ele mesmo levantara 
Um mundo novo nascia 
De que sequer suspeitava. 
O operário emocionado 
Olhou sua própria mão 
Sua rude mão de operário 
De operário em construção 
E olhando bem para ela 
Teve um segundo a impressão 
De que não havia no mundo 
Coisa que fosse mais bela. 

Foi dentro da compreensão 
Desse instante solitário 
Que, tal sua construção 
Cresceu também o operário. 
Cresceu em alto e profundo 
Em largo e no coração 
E como tudo que cresce 
Ele não cresceu em vão 
Pois além do que sabia 
– Exercer a profissão – 
O operário adquiriu 
Uma nova dimensão: 
A dimensão da poesia. 

E um fato novo se viu 
Que a todos admirava: 
O que o operário dizia 
Outro operário escutava. 

E foi assim que o operário 
Do edifício em construção 
Que sempre dizia sim 
Começou a dizer não. 
E aprendeu a notar coisas 
A que não dava atenção: 

Notou que sua marmita 
Era o prato do patrão 
Que sua cerveja preta 
Era o uísque do patrão 
Que seu macacão de zuarte 
Era o terno do patrão 
Que o casebre onde morava 
Era a mansão do patrão 
Que seus dois pés andarilhos 
Eram as rodas do patrão 
Que a dureza do seu dia 
Era a noite do patrão 
Que sua imensa fadiga 
Era amiga do patrão. 

E o operário disse: Não! 
E o operário fez-se forte 
Na sua resolução. 

Como era de se esperar 
As bocas da delação 
Começaram a dizer coisas 
Aos ouvidos do patrão. 
Mas o patrão não queria 
Nenhuma preocupação 
– “Convençam-no” do contrário – 
Disse ele sobre o operário 
E ao dizer isso sorria. 

Dia seguinte, o operário 
Ao sair da construção 
Viu-se súbito cercado 
Dos homens da delação 
E sofreu, por destinado 
Sua primeira agressão. 
Teve seu rosto cuspido 
Teve seu braço quebrado 
Mas quando foi perguntado 
O operário disse: Não! 

Em vão sofrera o operário 
Sua primeira agressão 
Muitas outras se seguiram 
Muitas outras seguirão. 
Porém, por imprescindível 
Ao edifício em construção 
Seu trabalho prosseguia 
E todo o seu sofrimento 
Misturava-se ao cimento 
Da construção que crescia. 

Sentindo que a violência 
Não dobraria o operário 
Um dia tentou o patrão 
Dobrá-lo de modo vário. 
De sorte que o foi levando 
Ao alto da construção 
E num momento de tempo 
Mostrou-lhe toda a região 
E apontando-a ao operário 
Fez-lhe esta declaração: 
– Dar-te-ei todo esse poder 
E a sua satisfação 
Porque a mim me foi entregue 
E dou-o a quem bem quiser. 
Dou-te tempo de lazer 
Dou-te tempo de mulher. 
Portanto, tudo o que vês 
Será teu se me adorares 
E, ainda mais, se abandonares 
O que te faz dizer não. 

Disse, e fitou o operário 
Que olhava e que refletia 
Mas o que via o operário 
O patrão nunca veria. 
O operário via as casas 
E dentro das estruturas 
Via coisas, objetos 
Produtos, manufaturas. 
Via tudo o que fazia 
O lucro do seu patrão 
E em cada coisa que via 
Misteriosamente havia 
A marca de sua mão. 
E o operário disse: Não! 

– Loucura! – gritou o patrão 
Não vês o que te dou eu? 
– Mentira! – disse o operário 
Não podes dar-me o que é meu. 

E um grande silêncio fez-se 
Dentro do seu coração 
Um silêncio de martírios 
Um silêncio de prisão. 
Um silêncio povoado 
De pedidos de perdão 
Um silêncio apavorado 
Com o medo em solidão. 

Um silêncio de torturas 
E gritos de maldição 
Um silêncio de fraturas 
A se arrastarem no chão. 
E o operário ouviu a voz 
De todos os seus irmãos 
Os seus irmãos que morreram 
Por outros que viverão. 
Uma esperança sincera 
Cresceu no seu coração 
E dentro da tarde mansa 
Agigantou-se a razão 
De um homem pobre e esquecido 
Razão porém que fizera 
Em operário construído 
O operário em construção.

O poema vem daqui.

 

 


Deixe um comentário

Árvores

“When we have learned how to listen to trees, then the brevity and the quickness and the childlike hastiness of our thoughts achieve an incomparable joy.”

Esta frase do Hermann Hesse recorda-me de que já não abraço uma árvore há muito tempo. Seis anos, precisamente. Quando a Beatriz era bebé levava-a no marsúpio e abraçávamos as árvores e acariciávamos as flores.

Agora defino destinos diários, sigo viagens vertiginosas e as árvores da cidade são apenas decorativas.

Quando vi a imagem deste quarto, pensei que seria feliz aqui.

enchanted_forest_frenchbydesign_blog_1

“A árvore sussurra à noite, quando estamos inquietos diante dos nossos próprios pensamentos infantis: as árvores têm pensamentos longos, uma respiração longa e tranquila, tal como têm uma vida mais longa do que a nossa.

Elas são mais sábias do que nós, enquanto nós não as  ouvirmos.

Mas quando aprendermos a ouvir as árvores, a brevidade e a rapidez e a pressa infantil dos nossos pensamentos alcançarão uma alegria incomparável. Quem aprendeu a escutar as árvores, já não quer ser uma árvore. Já não quer ser nada, excepto o que é.

Isso é estar em Casa.

Isso é a Felicidade.”

Trees: Reflections and Poems, 1984

enchanted_forest_frenchbydesign_blog_2

Conhecia o texto de Hermann Hesse, mas infelizmente não tenho o livro, nem encontro uma tradução à venda.

Encontrei o excerto no blog Brain Pickings.

So the tree rustles in the evening, when we stand uneasy before our own childish thoughts: Trees have long thoughts, long-breathing and restful, just as they have longer lives than ours. They are wiser than we are, as long as we do not listen to them. But when we have learned how to listen to trees, then the brevity and the quickness and the childlike hastiness of our thoughts achieve an incomparable joy. Whoever has learned how to listen to trees no longer wants to be a tree. He wants to be nothing except what he is. That is home. That is happiness.”

enchanted_forest_frenchbydesign_blog_3

As imagens da casa a fingir que é floresta são do blog French by Design.

enchanted_forest_frenchbydesign_blog_4

enchanted_forest_frenchbydesign_blog_5


Deixe um comentário

A lápis

Há pessoas que sabem tudo.

Ouvem um problema, opinam e convencem-se de que encontram a solução.

Como se a vida fosse um caderno de receitas e o comprimido que alivia um aliviasse todos…

Clarice Lispector esclarece esta presunção através da metáfora dos sapatos.

“Antes de julgar a minha vida ou o meu carácter, calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderá julgar. Cada um tem a sua própria história. Não compare a sua vida com a dos outros. Você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida.”

Ouvi-a, dita por Pedro Lamares, no programa da RTP 2,  Literatura Aqui.

Viarco_portugal_danielsommer_12.2_8535

O programa “Literatura Aqui” vai já na quarta temporada e, como o nome indica, elogia a obra literária e o poder revolucionário da literatura.

Talvez a literatura nos alivie, mesmo quando nos mostra que as personagens ficcionadas são mais simples do que as personagens que vivem connosco e dentro de nós;

com os livros, tomamos consciência de que a realidade supera sempre a fantasia;

por outro lado, a leitura aumenta a nossa realidade e a nossa dimensão humana.

Acredito que quanto mais leio, mais humana me torno!

Ainda que fosse apenas essa a missão da literatura: ajudar-nos a  aumentar a nossa dimensão humana e perceber alguma coisa da Vida (o que já é muito), já era louvável a iniciativa “Poesia na Fábrica”:

em S.João da Madeira, a poesia chega, pontualmente, à fábrica Viarco:

as máquinas param e todos os trabalhadores escutam e lêem poesia: partilham, riem; por momentos diluem hierarquias e são livres; descobrem-se, unem-se, criam laços e cumplicidades.

Viarco_portugal_danielsommer 2018

É um gesto generoso, incentivado pela Câmara, e que devia ser repetido em todas as empresas e instituições do país: levar a poesia do trabalho para casa, da escola para casa, de casa para o mundo, … e vice-versa.

Talvez não chegássemos ao final do mês com mais dinheiro no bolso, mas chegaríamos, sem dúvida, mais lúcidos, mais felizes e mais ricos.

Os episódios “Literatura Aqui” estão todos disponíveis aqui.

Referi que o apresentador é o Pedro Lamares?

(Suspiro…)

Viarco_portugal_danielsommer

As fotografias da fábrica Viarco são do blog SLANTED.


Deixe um comentário

Voos

Marinheiro

 

“Aquele pássaro que voa pela primeira vez

afasta-se do ninho olhando para trás

Com o dedo nos lábios

Chamei-vos

Inventei jogos de água

na copa das árvores

Tornei-te a mais bela das mulheres

tão bela que enrubescias nas tardes

A lua afasta-se de nós

e lança uma coroa sobre o pólo

Fiz correr rios

que nunca existiram

De um grito ergui uma montanha

e em volta dançámos uma nova dança

Cortei todas as nuvens do Este

E ensinei a cantar um pássaro de neve

Caminhemos sobre os meses desatados

Sou o velho marinheiro

que cose os horizontes cortados”

Vicente Huidobro, Chile, 1893-1948

 

A poesia ou faz-nos voar ou faz-nos contemplar os pássaros que voam.

Qualquer uma das opções é mais que perfeita.

Adeus!

Imagem de Nhung Le.


3 comentários

Cru

Os poetas modernistas são de uma crueza impressionante;

uma crueza bem distante do peso da vida em que vivem, felizmente, a maior parte dos adolescentes.

Às vezes, sinto-me uma quebra-sonhos, às voltas com a dureza e o desencanto de poemas tão profundos, mas tão negros.

E lamento que, no correr do “programa a cumprir porque pode sair no Exame”, falte tempo para ler os poemas luminosos dos poetas modernistas.

mario-de-sa-carneiro

Não sendo o poema que se segue propriamente optimista, mostra um lado de Mário de Sá-Carneiro sarcático e bem-humorado.

E quem é que, depois dos 40 anos, não tem dias tão secos e esfarelados que sente na boca cada palavra desta “Serradura”?

Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo!

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Mário de Sá-Carneiro, Paris, Setembro 1915

Um poema intenso mas incompreensível aos olhos de almas de 17 anos (ainda bem!).

É preciso viver para interpretar.

A crueza das palavras reflete a agudeza das emoções do poeta:

sete meses depois de ter escrito este poema, Mário de Sá-Carneiro deixa mesmo a sua vida num quarto de hotel em Paris, aos 26 anos.

Faz hoje 101 anos.