No Curso de Cultura Geral de 8 de Abril, Anabela Mota Ribeiro fez o seguinte prólogo:
“Nos últimos anos de vida, o escritor Scott Fitzgerald viveu com uma jornalista, jovem, para quem compôs um curso de cultura geral, onde estavam as obras que ele achava que ela devia conhecer. Ela, Sheilah Graham, condensou a experiência no livro College of One. Foi um curso para um, para uma, e foi uma tentativa de fixar um cânone.
A ideia é desafiadora: o que deve constar numa lista assim? Quais são as obras a partir das quais podemos dizer que uma pessoa é culta?
Outra coisa é pensar nas referências particulares, nas obras, encontros, livros, experiências que formam cada indivíduo. Isso implica um entendimento de cultura mais abrangente e menos circunscrito à erudição.
É daqui que parto para este programa. Muitas vezes há uma coincidência entre o Aristóteles ou a Capela Sistina, entre os indisputáveis do cânone, e os nomes apontados nas listas particulares. Muitas, muitas vezes, não. E as obras apontadas são, sobretudo, peças que tiveram um efeito detonador, um encontro que possibilitou uma expansão do mundo.”

Como adoro listas, uma vez que organizam e sintetizam mentes despenteadas como a minha, decidi também fazer a minha lista de 10 peças que tiveram um “efeito detonador”:
1-Contos tradicionais da Colecção Formiguinha e contos do Eça, ouvidos pela voz da minha prima Teresa, quando eu ainda não sabia ler. Foi o meu primeiro contacto com a literatura, ainda antes de ter consciência do impacto que o Eça (e a voz da minha prima!) teria em mim. De todas as vezes que ouvia “A Aia”, eu sofria e gritava para dentro: Tirem o punhal da mão da Aia! – 1981.
2-As tardes, no tempo da escola primária, com a minha avó. A Senhora Rosa era costureira e, todos os dias, as senhoras da aldeia passavam o dia lá em casa, na sala de costura. Contavam muitas histórias que eu ouvia em silêncio. De vez em quando, um acerto de um alinhavo ou uma prova obrigava à interrupção do diálogo e eu tombava abruptamente na realidade. Descobri, assim, o carácter encantatório da narrativa. – 1983
3-Ouvir, pela mão do meu irmão e das inovadoras cassetes de vídeo, músicos como Pink Floyd, Super Trump, Dire Straits, Queen, David Bowie e conhecer, só através deles, um mundo tão diferente da Figueira da Foz, na altura uma cidade demasiado pacata e pitoresca. -1988
4-Estudar Latim. Foi como se aprendesse a ler outra vez: nunca mais deixei de fazer ligações e de reflectir sobre a sua origem, significado e significante. – 1992
5-Descobrir o cinema e conhecer outros mundos: “Pulp Fiction” foi o meu primeiro: “onde é que eu estive nos últimos 100 minutos?”. “A Insustentável Leveza do Ser”. Depois, “Tudo sobre a minha mãe”, de Álmodovar e “Disponível para amar”, de Wong Kar-wai: um corte com tudo o que já tinha visto no ecrã e na vida real; perceber que podia ir mais além. 1995

6- Estudar na FLUC e apaixonar-me por quase todos os professores que tive, apenas porque eles sabiam tanto e o conhecimento seduzia-me mais do que nunca: Carlos Reis, Rui Bebiano, Maria Aparecida Ribeiro, Ana Paula Arnaut e Pires Laranjeira, entre outros. Uma nova percepção do que é a literatura escrita em português: Saramago, Mia Couto e Pepetela: A Gloriosa Família, Luís Bernardo Honwana, As mãos dos pretos. Um arrebatamento por João Grosso, no teatro Paulo Quintela, na FLUC.- 1996
7-Perceber que a poesia também se canta, e muito, no Brasil. Ficar hipnotizada com as palavras de Chico Buarque, Tom Jobim, Elis Regina, Gilberto Gil, Bethânia, Caetano, Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Eliane Elias, Rosa Passos, Gal Costa, … Ficar obcecada com a forma como Chico Buarque consegue cantar a palavra “escafandrista”. Essa obsessão continua. – 1998
8-Perceber que a música existe sem palavras e passar a ter férias musicais com a outra metade do meu ♥. Depois de ver/ouvir Richard Bona e Bobby Macferry, veio o fascínio pelo jazz vocal, sobretudo feminino: de Esperanza Espalding, Melody Gardot a Nina Simone. 2004.
9-Conhecer outros autores e aprender que literatura é o que nos ensinam na Faculdade, mas tanto mais! Esse percurso temos de fazê-lo sozinho, mas são preciosas as ferramentas da formação de base: autores russos, americanos, franceses e portugueses. Afonso Cruz aparece, na prosa, e continua o efeito encantatório da infância. Descoberta tardia da poesia: David Mourão-Ferreira, Sophia, Eugénio de Andrade, Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Ferreira Gullar, Nuno Júdice, Jorge de Sena, …
10-Ser mãe: a experiência mais difícil mas mais arrebatadora da minha vida: ir ao fundo de mim, ser posta à prova, aprender, descentrar e Amar. Misturou-se, entretanto, com a ilustração, a fantasia e a realidade: Planeta Tangerina, Bruaá, Pato Lógico, Orpheu Negro e OQO, e com a animação de Miyazaki.
Gostar disto:
Gosto Carregando...