Um herói é um humano que se eleva e toca na esfera dos deuses.
Só alguns de nós conseguem, muito pontualmente, ultrapassar as paixões baixas (inveja, ciúme, ganância de poder, ambição material) e lutar por valores e interesses colectivos.
De resto, perante a misteriosa complexidade da vida, procuramos referências, tanto quanto ansiamos por validação.
Na infância, é premente esta necessidade de criarmos heróis e, por outro lado, de sermos amados pelos adultos.
Na adolescência, suspiramos por exemplos de rebeldia e confronto, geralmente idealizações de pessoas que nem conhecemos, já que o nosso sentido crítico se agudiza contra os adultos que nos rodeiam. Quanto à validação, é perigosamente feita pelos pares, através das mais absurdas tentativas de aceitação.
Chegamos a adultos e pouco muda.
No passado, os heróis eram construídos para nós: desde Ulisses ou Aquiles, na Antiguidade, até aos nossos navegadores quinhentistas, aos galardoados militares, aos combatentes desconhecidos (vítimas da crueldade e ambições alheias), aos chefes de Estado: todas as hipérboles foram ostentadas a fim de legitimar a política de um país isolado e agrilhoado. Para que não escapassem pontas soltas, os livros da escola repetiam a cartilha e formavam o povo. Quanto à validação, estava na classe social imediatamente mais favorecida, na família, no chefe, no vizinho. Se se vislumbrasse um risco fora do desenho, incorria-se no ostracismo ou numa denúncia anónima.
No presente, vivemos um paradoxo: os heróis não o são. Na verdade, já não têm de ser autores de feitos extraordinários – só precisam de ter os valores mais creditados: dinheiro ou visibilidade – o primeiro obtido maioritariamente através de roubos (i)legais; o segundo resultante da difusão nas redes sociais (ser influencer é o suficiente).
Em relação à validação, ela encontra-se na despudorada exibição de bens materiais e, de forma coerente, está também no mundo digital, refletida em likes e visualizações.
Talvez já não nos fabriquem heróis, mas é degradante que estejamos tão pouco exigentes.
Apreciamos aqueles que estão envolvidos nas paixões mais rasteiras e não os raros que se superam eticamente/intelectualmente/esteticamente/afetivamente/socialmente.
Reverenciamos os que são parecidos connosco, em vez de procurarmos a inspiração e referência nos que são melhores do que nós.
Sem subidas, não teremos quedas, mas também não sairemos do lodo.
É preciso um colectivo esclarecido para uma grande construção.
Ao contrário do que nos venderam no passado, nenhum herói surge e edifica sozinho.

Neste poema de Bertolt Brecht, confirmamos que os triunfos são obra de quem carrega os heróis nos ombros.
Perguntas de um operário letrado
Quem construiu a Tebas das Sete Portas?
Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que carregaram as rochas?
E a Babilônia destruída tantas vezes?
Quem a reconstruiu de novo, de novo e de novo?
Quais as casas de Lima dourada
abrigavam os pedreiros?
Na noite em que se terminou a muralha da China
para onde foram os operários da construção?
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a “Invencível Armada” naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?
Tantas histórias.
Tantas perguntas.
A fotografia é de Kin Coedel e faz parte da coleção ‘Dyal Thak’ , que significa em tibetano conexão ou “mutual ties” ou fios comuns.
Uma excelente tertúlia acerca dos heróis está disponível no meu programa de eleição: Original é a Cultura.