“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Entusiasmo

Enthousiasmos deriva da união de duas palavras gregas: en e theos

En significa dentro. Theos significa deus.

Assim, enthousiasmos significa, literalmente, ter um deus dentro de si.

Segundo Coimbra de Matos, o entusiasmo que sentimos é o melhor barómetro da nossa saúde mental.

A intensidade da centelha divina que nos habita é o indiciador do ânimo da psique.

Por outro lado, o desânimo, aliados à fuga da convivialidade, são importantes sinais de alerta.

Por muito solitários que sejamos – e que bom que é estar sozinha e no silêncio – só existimos e nos completamos em relação.

Às vezes, tocamos na alma dos outros, outras vezes não, mas na relação é que reside a possibilidade transformadora: é dela que sai o autoconhecimento, o crescimento, a cura e a criação.

Para o psiquiatra, a ordem é a seguinte:

“Penso porque existo.

Existo porque fui amado.”

A razão e o pensamento definem-nos, mas a existência só faz sentido porque temos um mundo relacional.

Quando ficamos indisponíveis para esse mundo, a pausa é obrigatória, assim como a introspeção e uma posterior ação.

Talvez alguns de nós tenham sido projetados para trabalhar.

Quanto a mim, surgi na Terra para contemplar e criar.

É por isso que sofro com o ritmo de vida que não me permite o tempo e a disponibilidade para me concretizar enquanto humana.

A essência da vida humana é criadora:

criar arte, criar amizades, criar amores, criar crianças, criar refeições, criar mundos íntimos (através da arte inventada pelos outros).

Quando não concretizamos a nossa missão, mirramos e enferrujamos como peças velhas de uma engrenagem que montaram para nós. Os ossos doem, as articulações gastam-se e o cérebro perde as cintilações divinas do entusiasmo.

A depressão instala-se.

O burnout estilhaça-nos.

Fragilizados, perdemos a capacidade de dizer não.

Não” é a única palavra que permite criar algo de novo: só se recusarmos o que já existe, traçaremos um novo caminho.

É esta a palavra preferida das crianças que precisam de desobedecer aos pais, porque urge mostrar-lhes que um novo ser chegou e as regras têm de ser redefinidas.

Crescemos e perdemos a aptidão natural de revolta, acumulamos “sins” e frustrações.

Sofremos porque ficamos, de facto, doentes e sofremos porque, nesta sociedade de sucesso e alegria imposta, sentimos, como nunca, a nossa desadaptação.

O quadro é de Eugène Boudin (França, Honfleur 1824–1898 Deauville); chama-se Beaulieu: a baía de Fourmis.

Neste momento, sob o signo do Sol e das divindades, fiquei entusiasmadíssima com a ideia de visitar a baía de Fourmis, em Beaulieu.

Algumas destas ideias aprendia-as neste documentário de Raquel Varela, “O Olhar nos Outros”, RTP2.

Outras aprendi-as com a vida e com aqueles que me tocaram a alma.

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Estações

Cada Inverno que passa custa-me mais do que o anterior.

A passagem do tempo não traz só sabedoria…

O frio e a escuridão, aliados a um estado de espírito tão pesado quanto os casacos em que me afundo, tolhem-me a vontade e o pensamento.

O Verão salva-me e renasço.

No Verão, é tudo fácil e leve.

Para seguir com esta determinação, só me faltam as calças de linho.

Várias calças de linho.

Ou sem ser de linho, mas em versão extra large.

Este outfit já testei: a minha missão nestas férias é recolher coletes junto dos homens da família que já não os usam.

Esta sobriedade de cores precisa de soltar-se com uns estampados de peças de estações passadas, conjugadas com uma cor que está ausente do meu armário: o vermelho.

Preciso de uma carteira vermelha ou amarela na minha vida, para me alinhar com o sol.

Uma cor para animar os básicos de onde não quero sair.

Continuo na minha difícil demanda de diminuir o consumo desenfreado e reabilitar peças dos anos anteriores, através de acessórios.

Uma túnica de linho e um blazer de linho talvez se justifiquem: são básicos, certo?

A necessidade do vestido branco já dura há anos: aquele vestido que não parece de praia nem de dormir.

E esta sou eu daqui a 10 anos, se conseguir manter o peso, mas essa é outra conversa…

As imagens são do Pinterest.


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Intersecção

Vivemos num tempo de mudanças rápidas.

Como em todos os períodos de transição do padrão social, há hesitações, receios, radicalismos e conflitos. Carecemos, portanto, de uma dose extra de humildade e temperança.

Sem o entendimento de que as feridas são profundas, não conseguiremos evoluir; sem a aceitação de que não somos perfeitos, não conseguiremos prosseguir.

As feridas foram provocadas por séculos de discriminações diversas.

Na verdade, a balança pendeu para um dos lados ininterruptamente: foram tempos violentos e cruéis para as mulheres e para as minorias.

Metade da população oprimiu a outra, durante os últimos séculos: basta consultar os direitos das mulheres de há 60 anos e percebemos que todos os preconceitos foram legislados e acolhidas pelas famílias que se queriam sossegadas e convencionais.

Nas últimas décadas, no Ocidente, as discriminações passaram a ser ilegais, mas não se alteram mentalidades por decreto.

Basta visitar o Portal da Violência Doméstica para o comprovar.

São números oficiais de Portugal, mas sabemos que, enquanto humanidade, temos ainda uma longa jornada.

A discriminação com base no sexo, na idade, na etnia, na religião, na orientação sexual, na deficiência e na pobreza continua a existir. Por esse motivo, a minha cidadania é atenta e ativa.

No entanto, pelas cicatrizes históricas, pela condição ainda vulnerável da mulher, pela mentalidade retorcida e medieval que ainda vigora em muitas cabeças, o meu feminismo é combativo, orgulhoso e é interseccional, uma vez que me preocupo com todas as mulheres que não são respeitadas ou tratadas com dignidade.

Os números oficiais são evidentes, mas há situações vergonhosas e escondidas e há situações dúbias.

Existem, também, oportunismos: a desonestidade não tem género, nem idade, etnia ou religião.

Mas não é por causa da exceção ou de falsos testemunhos que a regra se apaga. Não é por haver calúnias que deixa de ser essencial a denúncia.

Entretanto, à nossa volta, os ânimos exaltam-se a partir de qualquer rastilho.

Vivemos atritos quase diários: a balança pende radicalmente para qualquer um dos pratos da balança e os fundamentalismos inflamam as redes sociais a propósito de tudo e de nada. Acredito que tal durará enquanto não atingirmos o equilíbrio desejado.

Vivemos este estranho período de sensibilidades expostas, mas talvez esta seja uma excelente oportunidade para pensarmos antes de falarmos; talvez estejamos a aprender a viver em conjunto de forma mais civilizada e, para isso, tenhamos de reaprender a falar e a agir nesta nova configuração.

É difícil? Andamos mais desconfortáveis? Somos menos espontâneos?

Talvez, mas é o preço da evolução.

Se não queremos o mundo fossilizado dos nossos avós, temos de questionar frases feitas, corrigirmo-nos e reaprender, por nós próprios, as grandes certezas, até chegarmos a um novo equilíbrio das balanças.

O meu feminismo não é um equivalente do machismo, porque não pretende atacar o sexo masculino; pretende a plena igualdade entre humanos dos vários géneros.

O meu feminismo sabe de onde vem e é plenamente grato a todas as feministas que o antecederam.

O meu feminismo quer que sejamos mais corretos e generosos e que não exploremos a fraqueza do outro até sangrar.

O meu feminismo acolhe o conceito de sororidade, porque preza muitíssimo a amizade entre as mulheres, não menosprezando, todavia, com essa afeição, a presença masculina na minha vida.

O meu feminismo inclui todos os homens, aliados na luta, que têm também a responsabilidade de construir um mundo mais justo e pacífico.

O meu feminismo é abrangente ou interseccional, porque não admite quaisquer discriminações e percebe que há percursos com mais obstáculos do que o meu.

O meu feminismo é pacífico mas firme, porque não quer violência, mas não permite que o calem.

Destes e de mais feminismos falou Isabela Figueiredo na entrevista a Bernardo Mendonça, A Beleza das Pequenas Coisas. É sempre uma lição ouvi-los.


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Neighborhood

Depois de ter sido mãe, ganhei consciência da importância de zelarmos pelos nossos vizinhos e dinamizarmos um espírito comunitário, no local onde vivemos.

Iniciei-o na Figueira da Foz e trouxe-o para Estremoz.

No entanto, a zona antiga de Estremoz, onde vivo, não escapa à gentrificação.

Os edifícios históricos foram reabilitados e temos agora um bistrô, uma gelataria artesanal, um hotel com rooftop e um restaurante para a classe alta. Os vizinhos mais velhos morreram ou mudaram-se e, neste momento, temos esta chiqueza na praça, alguns serviços e pouquíssimos vizinhos. Por outro lado, o parque automóvel, embora intermitente, é de fazer inveja… a quem aprecia máquinas.

Apesar da questão da gentrificação ser discutida em Londres há anos, sobretudo com o caso do bairro East End, fiquei com a impressão de que ainda há bairros que escapam a esta descaracterização da paisagem urbana e humana em Londres.

Em East Dulwich, onde fiquei, senti-me num bairro londrino e li, nos roteiros, que o bairro mantém o “villagey feel“.

Vi lojas discretas, restaurantes de bairro e poucos turistas.

A 30 minutos de autocarro do centro de Londres, esta zona foi uma excelente surpresa.

Há anos que recorro ao Airbnb.

Gosto de passar horas a ver fotografias e a ler as críticas.

Este rés do chão independente de uma família londrina encantou-me de imediato.

Bem mais bonito do que nas fotos, mas também mais pequeno, o apartamento fez-me pensar como uma família consegue viver numa casa tão minúscula! É francamente espaçosa para passar uns dias, mas seria um desafio para o dia-a-dia de uma pessoa que está longe de ser minimalista.

Esta é, relativamente a um hotel, a grande vantagem do Airbnb: perceber como vivem os nativos, ouvir as suas sugestões à margem de recomendações turísticas e sentir o seu dia-a-dia.

No fundo, é esta a grande vantagem de partir numa viagem: agarrarmos a incrível oportunidade de ver outras possibilidades de ser pessoa.

Semanalmente, há mercado neste bairro.

Outra grande surpresa de Londres foi a alimentação.

Há duas décadas, tive uma experiência angustiante no Reino Unido.

Temia, agora, pelo meu almoço e, sobretudo, pela minha dose diária de cafeína.

Tudo o que comi, desta vez, foi delicioso, embora absurdamente caro.

Andámos entre o Spinach, a pizzaria Franco Manca e a Boulangerie do bairro.

O café também me saiu excelente: double expresso.

Estas fotografias mais mundanas foram todas tiradas pela Beatriz que já anda com um telemóvel.

Finalmente, diz ela!

Que aflição, digo eu.


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Caleidoscópio

Londres é uma cidade múltipla:

Intensa e vibrante.

Noturna e frenética.

Monástica e protocolar.

Descontraída e acolhedora.

E muitos outras que eu não conheci em 5 dias de viagem.

No início deste ano letivo, a Beatriz pretendia conhecer a faceta académica da capital, através de um projeto ousado que a diretora de turma queria implementar na escola. Entretanto, intensificou-se a crise, disparou a inflação e manteve-se a especificidade de vivermos numa região muito desfavorecida do interior alentejano, onde a maior parte das famílias contam os euros e não os sonhos.

Prometi à Beatriz que a viagem iria concretizar-se, ainda que tivéssemos de abdicar de outros projetos familiares.

Secretamente, planeava reencontrar o cenário dos videoclips punks da minha adolescência, lá nos perdidos anos 80, entre DrMartens e cristas rebeldes.

Esta é ainda a luz de Lisboa; não é a toa que é célebre.

A atmosfera a Norte é industrial e dramática.

O Tamisa já não é o “Great Stink” do século XIX, mas não conserva o romantismo de outros rios famosos.

Capital desde o século XI, apesar da destruição quase total no Grande Incêndio do século XVII (e dos bombardeamentos durante a Segunda Guerra Mundial), Londres exala a vitalidade e o cosmopolitismo que sempre a fez ressurgir.

O bulício é inebriante e, simultaneamente, acolhedor.

Toda a diversidade individual tem espaço. Apesar da sobrelotação do centro, senti que a pluralidade cultural é a maior riqueza da cidade.

São muitos os estímulos, sobretudo para quem, como eu, gosta de observar e tem uma enorme curiosidade acerca dos outros.

No meu velhinho Guia American Express, li que Picadilly (a principal artéria de West End) já se chamou Portugal Street.

O Soho aparece descrito nos roteiros como o local das ruas enérgicas e o epicentro da vida diurna e noturna. É magnético.

À noite, os jovens correm pela cidade em grupos alegres. Nas estações, li vários avisos divertidos e ilustrados a avisá-los de que não eram canguros e que era proibido correr nesses locais públicos. Identifico-me muito com este tipo de humor, já desde a Britcom dos serões de sábado do milénio passado, na RTP2.

Nem com o Guia do American Express consegui entender o Metro de Londres, mas fiquei compensada com a rede de autocarros. A aplicação Maps.me indica claramente o local das paragens e o número do autocarro, assim como o tempo que cada um demora a chegar.

O teatro inglês nasceu no século XVI e nota-se esta devoção pela cidade: nas tragédias e nos musicais baseados em todos os sucessos de que nos possamos lembrar.

Não explorámos a versão adulta, mas estivemos presentes na juvenil: Matilda, o momento alto das férias para a Beatriz. Apesar de não ser apreciadora de musicais, também fiquei impressionada com o rigor e profissionalismo de atores/cantores/bailarinos tão pequenos (que nunca recorrem ao playback, ao contrário do que acontece com alguns profissionais de renome).

O Museu de História Natural também foi a escolha da Beatriz.

Percebi que é muito fácil e prático reservar os bilhetes com antecedência. As entradas na maior parte dos museus são gratuitas, mas as filas para o levantamento dos bilhetes é interminável. Com reserva online, mediante uma doação simbólica, a entrada é VIP.

Os bairros menos movimentados da cidade ainda mantêm aquela patine imaginária do filme “Notting Hill”.

O Convent Garden desorientou o meu lado consumista, mas como só visitei este mercado no último dia, já não tinha como me perder.

Esta não foi a viagem introspetiva da Noruega;

também não encontrei os punks da minha adolescência: talvez andem a passear os filhos por cidades europeias e tenham rapado a crista, mas foi uma viagem que deu mais mundo à minha filha e…

à mãe da minha filha que fica, por vezes, demasiado fechada numa cidade do interior alentejano.

Para a semana ainda vou rever o meu bairro preferido e a experiência de alojamento.


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A voz do rouxinol

O mistério da linguagem poética está ligada ao seu lugar de escrita.

A prosa aprende-se, pratica-se, constrói-se.

O poema jorra de um local profundo e poderoso; somente o que tem essa origem radiante e obscura perdura.

Escrever um poema de amor é ainda mais enigmático.

Quando estamos apaixonados, o cérebro mirra e só nos surgem metáforas ridículas; as mesmas que ouvimos nas canções pirosas.

Quem quiser comprovar se está apaixonado pode ligar o rádio: se começar a identificar-se com as letras das baladas em voga, accione o botão de pânico: foi apanhado!

Como é que o poeta apaixonado escreve sem se distrair com a linha dos lábios ou com o formato do ombro do amado?

Fernando Pessoa anuncia que o poeta finge a dor que deveras sente, ou seja, que só regista a grande emoção após tê-la vivido, isto é, escreve quando a comoção acalma e o intelecto reinicia o sistema. Mas será que, não obstante a sua genialidade, Fernando Pessoa alguma vez foi fulminado por estes arrebatamentos?

Da paixão, nunca me resultou um poema, nem um verso; apenas ansiedade, o corpo mais esguio e… más decisões.

Borges, escreve este poema: cada verso com a força criadora de um livro.

E o final?

As causas

Todas as gerações e os poentes.

Os dias e nenhum foi o primeiro.

A frescura da água na garganta

De Adão. O ordenado Paraíso.

O olho decifrando a maior treva.

O amor dos lobos ao raiar da alba.

A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.

A Torre de Babel e a soberba.

A lua que os Caldeus observaram.

As areias inúmeras do Ganges.

Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.

As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.

Os passos do errante labirinto.

O infinito linho de Penélope.

O tempo circular, o dos estóicos.

A moeda na boca de quem morre.

O peso de uma espada na balança.

Cada vã gota de água na clepsidra.

As águias e os fastos, as legiões.

Na manhã de Farsália Júlio César.

A penumbra das cruzes sobre a terra.

O xadrez e a álgebra dos Persas.

Os vestígios das longas migrações.

A conquista de reinos pela espada.

A bússola incessante. O mar aberto.

O eco do relógio na memória.

O rei que pelo gume é justiçado.

O incalculável pó que foi exércitos.

A voz do rouxinol da Dinamarca.

A escrupulosa linha do calígrafo.

O rosto do suicida visto ao espelho.

O ás do batoteiro. O ávido ouro.

As formas de uma nuvem no deserto.

Cada arabesco do caleidoscópio.

Cada remorso e também cada lágrima.

Foram precisas todas essas coisas

Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Imagem: Ignant


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Fast Heroes

Um herói é um humano que se eleva e toca na esfera dos deuses.

Só alguns de nós conseguem, muito pontualmente, ultrapassar as paixões baixas (inveja, ciúme, ganância de poder, ambição material) e lutar por valores e interesses colectivos.

De resto, perante a misteriosa complexidade da vida, procuramos referências, tanto quanto ansiamos por validação.

Na infância, é premente esta necessidade de criarmos heróis e, por outro lado, de sermos amados pelos adultos.

Na adolescência, suspiramos por exemplos de rebeldia e confronto, geralmente idealizações de pessoas que nem conhecemos, já que o nosso sentido crítico se agudiza contra os adultos que nos rodeiam. Quanto à validação, é perigosamente feita pelos pares, através das mais absurdas tentativas de aceitação.

Chegamos a adultos e pouco muda.

No passado, os heróis eram construídos para nós: desde Ulisses ou Aquiles, na Antiguidade, até aos nossos navegadores quinhentistas, aos galardoados militares, aos combatentes desconhecidos (vítimas da crueldade e ambições alheias), aos chefes de Estado: todas as hipérboles foram ostentadas a fim de legitimar a política de um país isolado e agrilhoado. Para que não escapassem pontas soltas, os livros da escola repetiam a cartilha e formavam o povo. Quanto à validação, estava na classe social imediatamente mais favorecida, na família, no chefe, no vizinho. Se se vislumbrasse um risco fora do desenho, incorria-se no ostracismo ou numa denúncia anónima.

No presente, vivemos um paradoxo: os heróis não o são. Na verdade, já não têm de ser autores de feitos extraordinários – só precisam de ter os valores mais creditados: dinheiro ou visibilidade – o primeiro obtido maioritariamente através de roubos (i)legais; o segundo resultante da difusão nas redes sociais (ser influencer é o suficiente).

Em relação à validação, ela encontra-se na despudorada exibição de bens materiais e, de forma coerente, está também no mundo digital, refletida em likes e visualizações.

Talvez já não nos fabriquem heróis, mas é degradante que estejamos tão pouco exigentes.

Apreciamos aqueles que estão envolvidos nas paixões mais rasteiras e não os raros que se superam eticamente/intelectualmente/esteticamente/afetivamente/socialmente.

Reverenciamos os que são parecidos connosco, em vez de procurarmos a inspiração e referência nos que são melhores do que nós.

Sem subidas, não teremos quedas, mas também não sairemos do lodo.

É preciso um colectivo esclarecido para uma grande construção.

Ao contrário do que nos venderam no passado, nenhum herói surge e edifica sozinho.

Neste poema de Bertolt Brecht, confirmamos que os triunfos são obra de quem carrega os heróis nos ombros.

Perguntas de um operário letrado

Quem construiu a Tebas das Sete Portas?
Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que carregaram as rochas?
E a Babilônia destruída tantas vezes?
Quem a reconstruiu de novo, de novo e de novo?
Quais as casas de Lima dourada
abrigavam os pedreiros?
Na noite em que se terminou a muralha da China
para onde foram os operários da construção?
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a “Invencível Armada” naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?

Tantas histórias.
Tantas perguntas.

A fotografia é de Kin Coedel e faz parte da coleção  ‘Dyal Thak’ , que significa em tibetano conexão ou “mutual ties” ou fios comuns.

Uma excelente tertúlia acerca dos heróis está disponível no meu programa de eleição: Original é a Cultura.


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Corpo

Tiffany ad Le Book

Meu Corpo Teu

Não me ensinaste a envelhecer
Mãe
Nem reparei sequer que envelhecias
Uma vez impacientei-me por não me ouvires bem
e tu disseste simplesmente: “Não vês que a tua Mãe
está a ficar velha?!”
Não via nunca tinha reparado protestei
não aceitei
Só agora compreendo
Agora que envelheces com meu corpo teu
ou que envelheço com teu corpo meu
Habituei-me a ver-te correr ligeira
à frente dos automóveis
a atravessar as ruas fora do risco dos peões
E de repente
sem avisar
a velhice caiu-me em cima

Envelhecias sem reparar
ou não querias pensar nisso
ou não consentias ao corpo esse vagar?

Agora aprendo à minha custa
sem a tua companhia
o que é envelhecer
Se calhar só através desta escrita
me vais ensinando
o que nunca aprendeste

Teresa Rita Lopes


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Pequenas Virtudes

Natalia Ginzburg nasceu em Palermo, em 1916.

No ensaio que dá o nome ao livro, descreve um modelo de educação assente nas grandes virtudes em detrimento das pequenas virtudes.

O que são as grandes virtudes?

Como distingui-las das pequenas?

“No que se refere à educação dos filhos, penso que lhes devem ser ensinadas não as pequenas virtudes, mas as grandes.

Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença pelo dinheiro;

não a prudência, mas a coragem e o desprezo do perigo;

não a astúcia, mas a franqueza e o amor da verdade;

não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação;

não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de conhecer.”

Neste ensaio de Natalia Ginzburg, surgem ainda reflexões que subscrevo e procuro alcançar na relação com a minha companheira de há 12 anos. Não sigo uma cartilha moralista, mas espero sempre que, pelo exemplo e pelos temas discutidos, a Beatriz interiorize a importância de agir com ética.

“A educação não é mais do que uma certa relação que estabelecemos entre nós e os nossos filhos, um certo clima em que florescem os sentimentos, os instintos, os pensamentos.”

“Hoje que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos […] é necessário que nos revelemos, nesse diálogo, tal como somos: imperfeitos; confiantes em que eles, os nossos filhos, não se nos assemelhem, sejam mais fortes e melhores do que nós.

“[…] eles devem saber que não nos pertencem, mas que nós sim lhes pertencemos“.

“Talvez a única possibilidade real que temos de lhes prestarmos algum auxílio na busca de uma vocação, é termos nós próprios uma vocação, que conhecemos, amamos e servimos com paixão: porque o amor pela vida gera amor pela vida.”

Fotografias: do fotógrafo ganense, Prince Gyasi, IGNANT


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Ana Mushell

Todos os anos escolho a minha ilustradora de eleição, geralmente logo nos primeiros meses do ano.

As pessoas impacientes e dadas a arrebatamentos não têm a serenidade necessária para aguardarem por Dezembro para fazerem balanços ponderados…

A ilustradora espanhola Ana Mushell chegou até mim através da minha amiga Carmen.

São ilustrações que estão em perfeita sintonia com o frio introspectivo do Inverno.

Ilustrações que reflectem a melancolia de Janeiro e de um Fevereiro que se adivinha eriçado.

Se a melancolia, a solidão e o silêncio são vitais para a manutenção da minha sanidade mental, também é verdade que precisam de se contrabalançar com convívio (muito) selectivo, estímulo mental e paisagens em movimento.

Por enquanto, tem prevalecido a “tristeza hermosa”, acompanhada de Billie Holiday, um livro, abraços apertados e a salamandra.

Este é o Instagram imperdível de Ana Mushell.

Depois desta pausa da natureza, em que tudo acontece subterraneamente, anseio pelo iminente florescimento exterior!