Sophia de Mello Breyner, intervenção de 1975, na Assembleia Constituinte:
“Num país e num mundo onde há famílias sem casa e doentes sem tratamento e sem hospital, a questão da liberdade da criação artística e intelectual pode parecer uma questão secundária, mas sabemos que a cultura influi radicalmente a estrutura social e a estrutura política. E por isso a questão da liberdade da cultura é uma questão primordial, pois a cultura não é um luxo de privilegiados mas uma necessidade fundamental de todos os homens e de todas as comunidades.
A cultura não existe para enfeitar a vida mas sim para a transformar para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e em liberdade e em justiça.
E se o homem é capaz de criar a revolução é exactamente porque é capaz de criar cultura.”
A maravilhosa intervenção de Sophia foi ouvida aqui.
Há tantos géneros quanto seres humanos no nosso planeta.
Seria tudo mais fácil, mas bem mais aborrecido, se apenas oscilássemos entre dois pólos.
Acredito que há uma escala entre o feminino e o masculino e cada um de nós se situa num ponto.
O mesmo se passa com a orientação sexual.
Kinsey disse que a escala é de 0 a 6 e que ninguém está verdadeiramente nas extremidades, ou seja, ninguém é, indubitavelmente, homossexual ou heterossexual.
Somos mais fluídos do que aquilo que durante séculos se definiu de forma simplista.
No ano passado, a National Geographic dedicou uma edição ao género, igualdade e fluidez de género: entrevistaram crianças de 9 anos para perceberem de que forma elas se sentem limitadas (ou mais livres) devido ao seu género.
O vídeo com as entrevistas é incrível.
A menina da capa nasceu menino há 9 anos e a sua maior alegria, desde que se assumiu menina, é não ter mais de fingir ser menino.
Ora o que se pretende, no futuro, é que ninguém tenha de fingir num assunto tão íntimo como a identidade e a sexualidade e que os tabus dos últimos séculos se desfaçam.
Pessoalmente, não tenho dúvidas de que uma sociedade resolvida intimamente vai ser uma sociedade mais bondosa e empática.
Em 2008, a TVE exibiu um documentário acerca da desordem do nosso mundo, intitulado “A Ordem Criminosa do Mundo”.
Entre outros intervenientes, participaram Eduardo Galeano, escritor latino-americano (morreu em 2015), e Jean Ziegler, professor de Sociologia e antigo relator das Nações Unidas.
Dez anos depois, infelizmente, o documentário continua actual: o mundo mudou, como sabemos. Piorou.
É duro ver como estes dois homens descrevem o mundo, sobretudo porque, para além de terem um discurso que une exemplarmente a forma e o conteúdo, reflectem limpidez na análise que fazem.
Os donos do mundo
“Os verdadeiros donos do mundo hoje são invisíveis. Não estão submetidos a nenhum controlo social, sindical, parlamentar. São homens nas sombras que procuram o governo do mundo. Atrás dos Estados, atrás das organizações internacionais, há um governo oligárquico, de muito poucas pessoas, mas que exercem uma influência e um controlo social sobre a humanidade, como jamais Papa algum, Imperador ou Rei tiveram.” – Jean Ziegler
“O atual sistema universal de poder converteu o mundo num manicómio e num matadouro.” – Eduardo Galeano
A globalização
“No processo de criação do mercado globalizado, da unificação do mundo sob a lei do lucro máximo, um dos tipos de capital emancipou-se: o capital financeiro, virtual e líquido, que toma corpo nas Bolsas e que domina o capital comercial, industrial e o capital social, em todas as suas formas.” – Jean Ziegler
“O capital financeiro percorre o planeta 24 horas por dia com um único objectivo: obter o lucro máximo. A globalização é uma grande mentira. Os donos do grande capital que dirigem o mecanismo da globalização dizem: Vamos criar economias unificadas pelo mundo inteiro e assim todos poderão desfrutar de riqueza e de progresso. O que existe, na verdade, é uma economia de arquipélagos [de riqueza] que a globalização criou.” – Jean Ziegler
“Há três organizações muito poderosas que regulam os acontecimentos económicos: Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio; são os bombeiros piromaníacos. Elas são, fundamentalmente, organizações mercenárias da oligarquia do capital financeiro invisível mundial.” – Jean Ziegler
“Todos os dias neste planeta, segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), 100 mil pessoas morrem de fome ou por causa das suas consequências imediatas. No ano passado, a cada 5 segundos, uma criança com menos de 10 anos morria de fome. Tudo isto acontece num planeta que, segundo a FAO, poderia alimentar 12 biliões de seres humanos [somos 7 biliões], ou seja, quase o dobro da população mundial. Nesta matança quotidiana, não há fatalidade alguma.” – Jean Ziegler
O dicionário
“Hoje às torturas chamam-se “procedimento legal”, à traição chama-se “realismo”, ao oportunismo chama-se “pragmatismo”, ao imperialismo chama-se “globalização” e às vítimas do imperialismo, “países em vias de desenvolvimento”. O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem, ou não sabemos o que dizem” – Eduardo Galeano
[A propósito de Guantánamo] “Não se tortura para obter informações, isso é falso. Tortura-se para semear o medo e aí temos de reconhecer que a tortura é eficaz e, por isso, a tortura é agora objecto de publicidade incessante. A máquina de semear o medo utiliza a tortura para prevenir o delito da dignidade.” – Eduardo Galeano
O medo
“Vivemos na sociedade do medo. Quem não tem medo de perder o emprego, tem medo de não encontrar emprego, o que é um medo semelhante. Espalharam-se pânicos: o pânico de viver, o pânico de ser, o pânico de mudar, o pânico dos demónios que inventam para nos assustar.” – Eduardo Galeano
A emigração
“A Organização Mundial do Comércio assegura, em nome do capital financeiro, a total liberalização de circulação de mercadorias, capitais, patentes e serviços. As pessoas não aparecem no projecto da OMC, são atiradas para as vedações de arame farpado de Ceuta e morrem no Estreito de Gibraltar.”- Jean Ziegler
“Esta invasão dos invadidos, pessoas que do Sul marcham para Norte (o Norte que tantas vezes invadiu o Sul em guerras coloniais e nas guerras que eram coloniais mas diziam que não eram), são emigrantes que deambulam numa peregrinação inútil, procurando casa, trabalho, um destino. Este êxodo trágico dos desamparados é um êxodo de pessoas que aspiram a ser tratadas como o dinheiro. Para o dinheiro não há fronteiras. Os muros altos servem para que os privilegiados possam seguir sendo a minoria que manda e os outros se resignem a ser a maioria que obedece.” – Eduardo Galeano
O que fazer?
“Se hoje eu digo que faz falta uma rebelião, uma revolução, um desmoronamento, uma mudança total desta ordem mortífera e absurda do mundo, simplesmente estou a ser fiel à tradição mais íntima, mais sagrada da nossa civilização ocidental. O nosso dever primordial hoje deve ser reconquistar a mentalidade simbólica e dizer que a ordem mundial, tal como está, é criminosa. Ela é frontalmente contrária aos direitos do homem e aos textos fundacionais das nossas civilizações ocidentais.” – Jean Ziegler
“A primeira coisa que devemos fazer é olhar para a situação de frente e não considerar como normal e natural a destruição, por exemplo, de 36 milhões de pessoas por culpa da fome e da desnutrição. Temos de rejeitar como algo normal a destruição dos nossos semelhantes. De nenhum modo, devemos permitir que as grandes organizações de comunicação nos intimidem, nem as fábricas das teorias neoliberais das grandes corporações, pois todas as corporações se ocupam, primeiro, de controlar as consciências, de controlar, como podem, a imprensa e o debate público. E tratam de ocupar o debate público, para esvaziar os cérebros.” – Jean Ziegler
Janeiro provém de Jano, um dos mais antigos deuses do panteão romano.
Jano era o deus de todos os princípios, o que motivou Júlio César a escolhê-lo para designar o primeiro mês do calendário (calendário que ostentava o seu nome, o calendário juliano).
Jano é representado com dois rostos que se opõem: um olhando para a frente, outro olhando para trás.
Atribuem-se ao reinado de Jano as habituais características da Idade do Ouro: completa honestidade dos homens, abundância e paz profunda.
Terá sido Jano o inventor dos barcos.
As mais antigas moedas romanas em bronze tinham, numa das faces, a efígie de Jano e o reverso representava a proa de um barco.
Uma apresentação que se intitula “Há mais na vida do que ser feliz” já é suficientemente provocatória, sobretudo quando vivemos numa época em que proliferam livros de autoajuda, artigos e lista com promessas de felicidade empacotada.
Mas se alcançar a felicidade fosse só seguir uma “to do list”, não seríamos hoje um dos países da União Europeia que mais toma antidepressivos e ansiolíticos.
A falha, a meu ver, começa quando se liga felicidade a sucesso e se traduz sucesso por: ter casa própria, carro novo, namorado boneco e dinheiro para pequenos (ou grandes) luxos.
Todos conhecemos pessoas que reúnem todos (ou quase todos) estes requisitos e continuam ansiosas, dependentes de Lexotan e com um vazio inexplicável.
Emily Smith propõe-nos uma reflexão sobre o sentido da vida humana, mais do que vivermos como toupeiras à procura de uma felicidade que, inevitavelmente, chega, foge e se esconde.
Como dar sentido à vida?
1- Alimentar o sentimento de pertença:
Estabelecer relações em que se é valorizado/se valoriza pelo que se é e em que se dá, de facto, atenção ao outro: quer seja o senhor que nos vende o café, um familiar, um vizinho, um amigo.
Ultimamente, reparo que é raro alguém focar-se no outro: há o telemóvel, há a vida exterior (e interior) e muitos dos diálogos são estranhos, porque já não se responde à deixa do outro, monologa-se.
2- Estabelecer objectivos de vida:
Ter objectivos de vida que vão para além do “tirar um curso e arranjar um bom emprego “.
Garantir a sobrevivência imediata é importante, mas Emily Smith fala em objectivos que passem por “dar” aos outros.
Numa sociedade tão pouco filantrópica, como aquela em que aterrámos, e tão defensora da esperteza e desenrascanço nacional (ainda que isso prejudique o próximo), fica evidente que temos um longo caminho a percorrer nesta área.
Salvar-nos-á, talvez, o espírito forte de família: amar os filhos é uma forma sublime de “dar-se”.
Emily defende que muitos de nós vêem o trabalho como uma forma de contribuir para algo maior e, por isso mesmo, o desemprego é mais do que um problema económico, é uma questão existencial. Bem visto!
3-Praticar a transcendência:
Encontrar uma forma de abstrair das minudências quotidianas.
Há quem o faça através da Fé, da Arte ou da criação: fazer algo que nos melhore enquanto seres humanos e que nos faça perder a noção de tempo e de espaço.
4- Encontrar a melhor versão da nossa história:
A nossa vida é narrada a nós próprios (e aos outros) centenas de vezes ao longo dos anos.
Devemos construir uma narrativa de redenção, crescimento e amor para nós próprios e não de autocomiseração e amargura.
Há quem precise de psicólogo para encontrar a melhor versão da sua história, há quem o faça sozinho, ao longo do tempo, através de muita introespeção.
♥
Precisei de sintetizar as reflexões da Emily, porque por vezes esqueço-me de que são estes 4 pilares que seguram a minha casa. Na verdade, só uma casa com uma arquiteta bem lúcida e bem ciente do sentido da vida consegue ultrapassar serenamente os momentos felizes e menos felizes que fazem parte da vida humana.
Afinal, como bem disse Emily, a Felicidade joga connosco ao “toca e foge” e nós temos de viver todos os dias!
Requer autoanálise, autoconfiança, hábito e educação.
A geração dos meus pais não verbalizou muito e, quanto à geração anterior, nem se fala…
Foram séculos de dificuldade/impedimento/proibição de explicitação afectiva!
O que não significa que não tenham amado, claro.
Os afectos eram concretizados em gestos:
os meus pais trabalharam muito para nos proporcionar o que não tiveram;
para além do trabalho fora de casa, deram-nos o seu tempo: cozinharam, arrumaram, tricotaram e até costuraram modelitos. Nós, às vezes, nem gostávamos muito (acabara de surgir o pronto a vestir, que era o máximo!), mas em cada ponto ou laçada de lã nós estávamos lá no seu pensamento.
Hoje, andamos a uma velocidade e vemos tantas imagens, comunicamos tanto (será?), espalhamos likes, lemos publicações, notícias, opiniões que nem paramos junto de quem gostamos. Infelizmente, essa vertigem faz com que elas parem também pouco em nós.
Surge o Natal e pensamos nas pessoas que vivem no nosso coração.
Apercebemo-nos, em Dezembro, que passaram meses e nós mal as olhámos… ou mal as vimos.
A missão deste Natal é transformar os afectos em gestos concretos!
Oferecer algo que demorou tempo a fazer.
Contrariar a rapidez da vida e oferecer o que foi feito com as mãos.
Enquanto amassamos, tricotamos, embrulhamos, demoradamente, pensamos nas pessoas de quem gostamos, revivemos os motivos pelas quais estão no nosso coração e elas param no nosso pensamento.
Bem mais tempo do que se fôssemos à loja comprar aquele bibelot engraçadinho!