“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Baixas paixões

No livro de Javier Marías, Berta Isla, a protagonista termina com uma citação de Dickens:

“qualquer criatura humana está destinada a representar um profundo segredo e mistério para todas as outras”. No entanto, “temos muitas pretensões: pretendemos decifrar as pessoas, sobretudo quem dorme e respira junto à nossa almofada”.

Estas são considerações tão inquietantes quanto fascinantes.

É muito mais confortável cristalizarmos um esboço de quem nos rodeia e criarmos uma narrativa (só nossa) que nos permite organizar o círculo social. Ficamos cómodos, arrumados e seguros, mas numa ficção.

É corrente esta tendência falaciosa, a nível pessoal, mas igualmente no âmbito social.

A verdade não tem importância, vendem-nos, diariamente, narrativas e nós já nem sabemos onde começaram as insinuações e suposições que nos encaminharam para uma historieta com “os bons” e “os maus”: quanto mais simples e polarizada for a acção, melhor para as massas.

É um terreno garantido, eficaz, facilmente comercializável e lucrativo, e assim se segue sem se procurar contraditório.

Vemos esse sensacionalismo vazio até nas manchetes dos nossos melhores jornais, sobretudo na sua versão digital e instagramável. O mercado do “clique” assim o obriga.

Numa sociedade polarizada, é fácil acirrar frentes e há quem não perca a oportunidade de ganhar com isso.

Na entrevista ao Expresso, um jornal de referência mas que também ganharia se revisse a sua conta de Instagram, reposta aquando da morte de Javier Marías, o escritor tenta explicar alguns retrocessos civilizacionais que observamos pela Europa.

[…] Como lê a ascensão da extrema direita e dos populismos?

É muito preocupante e perigosa. E tem a ver com o ressentimento latente na maior parte das pessoas. Algumas mais, outras menos, todas estão insatisfeitas ou invejam algo, sentem que o seu trabalho não foi suficientemente reconhecido ou veem que os outros vivem melhor. Isso nem sempre domina a personalidade, mas em certos momentos pode dominar. E quando há políticos que avalizam ou atiçam o ressentimento, ele salta facilmente. Ora, se este se tornar predominante nas relações humanas, o perigo é imenso, em qualquer época e lugar. No outro dia, li um artigo de uma brasileira que contava como, desde a vitória de Jair Bolsonaro, as pessoas se comportam como se tivessem carta branca. O que dá medo não é só este indivíduo que foi eleito, são os 56% dos votos que o elegeram. Os homossexuais e os negros estão a ser abertamente ameaçados. Isto leva a pensar que as pessoas, no momento em que veem legitimadas as suas paixões mais baixas, sentem-se no direito de atacar, insultar e ameaçar. De não esconder essas baixas paixões.

“Baixas paixões” é uma expressão dura.

É muito antiga. E podemos voltar a Shakespeare: basta que um Iago te segrede ao ouvido (ou com um megafone) as razões para alimentares o ressentimento, para que este apareça. É um sentimento muito fácil de criar — e é o que, em grande medida, ocorreu na Guerra Civil Espanhola. Os meus pais viveram-na aos 20 e poucos anos, e ouvi-os contar muitas histórias deste tipo. Além das questões políticas e ideológicas, foi como abrir a caixa dos trovões e dar licença às pessoas para cobrarem as suas vinganças.

(“Baixas paixões” é uma expressão bíblica retomada por escritores como Shakespeare; de todas elas, para este escritor, o medo era a mais aberrante. Na mitologia, surge a figura de Baco, como agregador de todas as “paixões baixas”. Tal como Javier Marías, preocupa-me muito o discurso de figuras com responsabilidade política que legitimam o assumir, sem pudor, das “paixões baixas”. Noutra acepção, as paixões carnais, com altos e baixos, são as únicas saudáveis.)

A fotografia é da dupla Agnes Kulesza e Lukas Pik.

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Calendário do Advento

O Calendário do Advento que interessa é oferecido por Anabela Mota Ribeiro.

“Advento significa chegada. Essa chegada pressupõe uma espera e é uma promessa.

O Calendário do Advento anuncia, dia a dia, o aparecimento de um ser, de algo que se inicia.

Ou seja, uma vida nova, um nascer de novo.”

Gosto de recomeços (não tanto de balanços) e o meu recomeço, por excelência, começa agora e prolonga-se por Janeiro, o mês de Jano, o deus de todos os princípios.

Aldina Duarte é a primeira entrevistada de Anabela Mota Ribeira e eu guardo para este novo ciclo algumas frases da sua autoria, acerca do maior exemplo de resistência e rebeldia da cultura ocidental, Jesus.

Que ideia revolucionária essa de olhar todos os seres humanos como iguais e dignos de bondade e compaixão!

2000 anos depois, ainda é extraordinária, mesmo dentro da cultura europeia!

Ser-se de esquerda é parecido com ser-se cristão. 

Eu não sou católica, mas sou devota do cristianismo.

Adoro toda a história de Jesus. 

E acho que se se partir do Amor, vai-se sempre num caminho bom.”

Sucedem-se as entrevistas diárias, neste Calendário do Advento, com testemunhos e relatos de outros Natais, alguns mais mitificados, outros mais reais. Misturam-se os testemunhos com as minhas memórias dessa noite de entusiasmo, lareira, luzinhas, mas também de doces e rituais.

Gostei do Natal até ser jovem adulta.

Depois, por emancipação ou desencanto, aborreci-me.

Nada é estático e, como em todas as famílias, houve perdas… Felizmente, também fomos presenteados com duas meninas que devolveram toda a ternura ao Natal.

É agora a vez destas crianças viverem o Natal mais que perfeito, talvez mais despertas do que eu para as particuaridades e reformulações familiares.

Para os adultos, talvez seja mais premente reflectir nas palavras de Aldina Duarte.

Feliz Natal!

Bruno Barbey nasceu em Marrocos, mas ficou com dupla nacionalidade: francesa e suiça.

Fotografou durante 50 anos por todos os continentes e acreditou que a fotografia é “a linguagem que pode ser compreendida no mundo inteiro”.

Esteve em Portugal nos anos 60 e 90 e fotografou, em Óbidos, estas mulheres perfumadas.


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Mulher de nuvens

Apesar de sempre ter revisitado autores clássicos, ultimamente dou por mim a procurar autores e manifestações artísticas comprometidas com o mundo atual.

Estamos a viver uma fase muito conturbada da humanidade e eu preciso de perceber como é que se mantém a Esperança em tempos negros.

É claro que a Arte não tem de falar da inflação, nem dos salários cada vez mais curtos e dos meses cada vez mais longos, não precisa de testemunhar o caso da minha vizinha que não tem como alimentar os filhos, mas nós, que vemos e vivemos tudo isso, não nos podemos transformar em animais raivosos a defender o osso; o mesmo osso com que bateremos na cabeça dos outros e, brevemente, na nossa própria cabeça, quando nos faltarem os alimentos ou a sanidade.

Ferreira Gullar e a sua fina ironia sempre me salvaram.

Procuro os poemas onde todos tenham lugar.

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão


O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Jonh Malkovich apresentou em Lisboa o espetáculo “The Infamous Ramirez Hoffman”, adaptado do livro do chileno Roberto Bolaño, A Literatura Nazi nas Américas.

O infame Hoffman tinha pretensões a artista, era criativo, tinha sentido estético, mas ignorava a ética. Mais tarde, sem surpresa, tornou-se um assassino.

Com as devidas distâncias, hoje, um artista que viva na torre de marfim, envolto na estética, desilude-me em termos éticos; assume, com o silêncio, uma ruidosa cumplicidade com o Mal.

Prefiro, sem dúvida, a frase de Lídia Jorge:

Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas.

É preciso estar com quem vive de migalhas.”


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Recuperar

Há dois anos que o meu lema de consumista em recuperação mudou:

menos compras, mais Pinterest.

No entanto, quando há uma exposição diária e não se compra roupa com a frequência de outrora, entra-se facilmente na repetição maçadora de outfits.

Sobretudo no Inverno.

Sobretudo quando se é muito friorenta.

Para uma variação cromática, já comecei a alternar o total black com o total “galão”.

Ou total capuccino, para me reconciliar com os castanhos de que ando há décadas injustamente afastada.

Estas são as botas mais cool dos últimos tempos, compradas nos saldos do ano passado.

Ando a conter-me para não prevaricar com a versão castanha.

Talvez ainda quebre a minha determinação nos saldos, se encontrar mesmo uma extravagância que valha a pena.

Ou talvez me contenha e leve a passear a minha extravagância de há dois anos.

Juntamente com o mood do último ano.

No novo ano, vou arriscar nestes olhos!

Em períodos de crise, o “efeito batom” é incontornável – um luxo pouco acessível que funciona como escape e ilumina a imagem.

Em “pendant” com a luz interior, ajuda qualquer look!

Let´s shine!


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Curadoria íntima

A minha pré adolescente borbulha autonomia e determinação, excepto à noite, antes de dormir, altura em que se permite procurar a proteção e a cumplicidade da Mãe.

Andamos há semanas acompanhadas pelo Ben e pela Rose, em grandes viagens por Minnesota, New Jersey e, por fim, numa grande aventura em Nova Iorque.

Temos viajado por espaços físicos e mentais de dois adolescentes determinados em encontrar-se a si próprios, quando os adultos mais próximos lhes falharam.

Valem-lhes outras pessoas e outros mundos.

Por esses motivos, este é um livro fantasioso, intenso mas também duro.

Rose
Desejo mais profundo de Rose

Aprendemos que, em 1869, Nova Yorque não tinha qualquer museu, ao contrário do que acontecia nas capitais da Europa ou mesmo em Filadélfia ou Chicago.

O jovem Theodore Roosevelt construiu um pequeno museu no alpendre de sua casa, onde organizava e catalogava as suas colecções; o pai de Theodore fez parte do movimento que fundou o Museu Americano de História Natural.

De facto, a maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Pretendia-se que quem os visse se maravilhasse, obviamente.

Ben, no final do século XX, construiu o seu próprio Museu das Maravilhas – ou mala das maravilhas pessoais – e lança a ideia de que qualquer um de nós pode construir o seu Armário de Maravilhas.

Ben defende que cada humano deve tornar-se curador da sua própria vida, zelando pelas suas referências e afectos, quer estas sejam físicas, quer sejam espirituais:

“Como será escolher os objectos e histórias que entrarão no nosso próprio armário?

Como é que apresentaríamos a nossa própria vida?

Talvez […] todos sejamos armários de maravilhas.”

A leitura nocturna já está no nosso armário

Ben e Rose são dois jovens surdos que enfrentam acrescidas dificuldades de comunicação, mas que conseguem estabelecer ligações fortes com os outros.

A noite no Queens Museum of Art é marcante.

Na verdade, este percurso das personagens por Nova Iorque está já registado na minha viagem de sonho.

Talvez os novos projectos sejam também uma forma de escapar ao enigma que acompanha Ben:

Estamos todos na sargeta, mas alguns de nós estão a olhar a estrelas“.

As personagens encontram as estrelas no cinema (mudo), nos museus por onde deambulam e nos segredos que desvendam na sua própria jornada.

Quanto às imagens, não ilustram a narrativa, constituem a narrativa.

Ando obsessivamente no encalço de Brian Selznick.

A edição portuguesa é da ASA.

A busca começou!

As estrelas aguardam-nos!

Nota: A maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Em Portugal, a este acumular desordenado de objectos maravilhosos (as “naturalia” e as “mirabilia”), por aristocratas, eruditos ou clérigos, chamava-se Gabinetes de Curiosidades.


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Voz combativa

A banalidade, a mediocridade e a insensibilidade propagam-se nas redes e nos órgãos de comunicação social.

Procura-se o rídiculo e o caricato das massas e o socialmente expectável das elites.

Talvez seja por isso que os comentadores dos canais televisivos estão ao nível dos programas de Domingo à tarde; tudo é coerente e condicente: são ex e actuais políticos, contabilistas e, na melhor das hipóteses, jornalistas.

Indigna-me o desinteresse que os editores dos canais revelam pelos filósofos, sociólogos, psicólogos, professores, historiadores, escritores, artistas, actores, … Os primeiros poderiam ajudar-nos a compreender e a salvar o mundo ou, pelo menos, a nossa alma; os últimos restituir-nos-iam a esperança, com um relato mais humano e poético do que nos rodeia.

Sempre que ouço um escritor, fico mais desperta e consigo distinguir a beleza das palavras e do pensamento.

Um povo desesperançado é desistente e alheado; a apatia é o nosso maior flagelo. Tudo nos é apresentado como muito maior do que nós, tão grande que nos paralisa e esmaga.

Lídia Jorge foi entrevistada por Bernardo Mendonça e, para além de falar do seu novo livro Misericórdia, comentou o mundo.

Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas.

É preciso estar com quem vive de migalhas.”

A entrevista é longa, mas tão lúcida que senti necessidade de reouvi-la.

Tive uma semana bem acompanhada por estas duas pessoas que salientam a nossa humanidade, ultrapassando a nossa sobrevalorizada animalidade.

Lídia Jorge refere a minha triste constatação inicial: “faltam-nos vozes combativas, formadas, éticas e não populistas”.

Os populismos propagam-se quando se acirram pobres contra pobres,

ou quando se aponta o dedo a quem tem fome (os que roubam a lata de atum),

ou quando se afasta do país quem nada tem (refugiados) e se acarinham corruptos (que são elevados a comentadores políticos ou presidentes).

Os populismos multiplicam-se quando não ficamos chocados e revoltados com quem não nos devolve o que nos deve (TAP), com os lucros que disparam nas empresas do retalho e petrolíferas.

Os populismos proliferam quando não há qualquer noção de responsabilidade social por parte de quem concretiza esquemas obscenos à custa da fome alheia.

Posto isto, tal como Sophia de Mello Breyner, em qualquer lugar do mundo, se os meus filhos passassem fome eu roubaria para eles.

“Há no mundo os grandes roubos. Eles estão aí. E esses não são tratados como ladrões. E a pessoa que rouba uma lata de atum é um ladrão. Temos de olhar para isto com outros olhos e não deixar que a sociedade atinja uma situação de penúria imensa.”


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Keep it simple

As reflexões proporcionadas por Redmond Barry em torno das relações foram densas e impactantes.

A discussão seguiu por semanas, pública (na página do Facebook) e privada.

A par dos balanços-charneira e decisões estruturais, são os dias sem história que constroem a narrativa de qualquer par, recente ou antigo. São esses que têm de valer a pena!

Um poema do dinamarquês Henrik Nordbrandt recordou-me a leveza e a suavidade dos primeiros encontros, quando nos aproximamos pé ante pé, “aos bocadinhos”, e tentamos perceber os formigueiros do coração.

esplanada

está a chuviscar um bocadinho

mas não tanto que se possa

chamar a isto mesmo chuva

e vamos ficando molhados lentamente

mas não tão molhados que valha

a pena falar disso

e um bocadinho apaixonados

mas não tanto que se possa

chamar a isto mesmo amor

Henrik Nordbrandt

A leveza inicial pode inspirar o quotidiano: Sting e Melody Gardot lançam o mote.

Ou seremos todos mais latinos, como os franceses, que precisam de causar periodicamente tempestades afectivas, mais ou menos controladas, para adicionar drama a uma relação que o tempo torna entediante? O minuto 7 deste vídeo explica como fazê-lo! É uma caricatura, mas reconheci a Ana de há alguns anos!

O que nos impele para a reacção plácida ou para a reacção sanguínea? Será o carácter, o temperamento, a inteligência emocional, o autodomínio, a maturidade ou a pessoa com quem nos relacionamos?

Ou serão apenas fases da nossa vida: vamos sendo arrebatados por ondas mais epidérmicas ou por vagas mais serenas ?


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Be Fu**ing Perfect

Estereótipos ainda em vigor:

O que confere poder a uma mulher é a beleza, a juventude e a elegância.

O que confere poder a um homem é a conta bancária, o estatuto social e o carisma.

Segundo este padrão, o capital masculino não oscila significativamente com a idade, nem com o peso da balança.

Não é preciso especial perspicácia para repararmos que o capital feminino fica em perigo a partir dos 50 anos.

É óbvio que esta bolsa de valores está inquinada e em transformação, mas é ingénuo pensar que uma indústria que lucra brutalmente com a disseminação destes princípios não nos influencia e não nos atormenta.

Pessoalmente, não auspicio um processo fácil, apesar de estar consciente do fenómeno e empreender uma incansável labuta interna.

É precisamente dos nossos receios e inseguranças que o crescente negócio de harmonização estética se alimenta.

Hoje, são-nos prometidas todas as soluções à la carte:

“moldar, transformar, cortar carne, alisar, aclarar, queimar a pele, comprimir e absorver mecanicamente a gordura, ingerir e injetar fármacos, toxinas, hormonas e outras biotecnologias líquidas, inserir prostéticos e implantes, enfrentar cirurgias extremas ou criar carne e contornos com silicone industrial”. – Chiara Pussetti

Instalação inserida na exposição “Be Fu**ing Perfect”

Aceitar as alterações que os anos trazem ao nosso corpo exige amor-próprio, carinho, robustez mental e muita generosidade.

Resisitir a imagens de perfeição e apelos agressivos para que encaixemos numa beleza irreal criada por técnicas de edição profissional é uma epopeia! Já não são apenas as revistas e os anúncios publicitários, as actrizes ou modelos que nunca ultrapassam os 30 anos de idade que nos fragilizam; vaguear pelo Instagram pode ser um rude golpe para uma autoestima em dia.

Até onde estamos dispostas a ir para travarmos esta luta contra o desvio, contra a gordura, contra o tempo, contra o nosso corpo?

Qual é o caminho socialmente aceitável?

– Rejeitar as preocupações estético-corporais e assumirmos o rótulo de “acabadas e descuidadas”?

– Investirmos em todos os métodos e ficarmos as “fúteis irreconhecíveis”?

Treino, estoicamente, o espírito e o corpo, assim como os afectos que me rejuvenescem mas, assumo, patrocino a indústria cosmética, com cremes, séruns, aclaradores, tintas e mil produtos capilares,… e, apesar do pavor que sinto por agulhas, não me sinto em condições para prometer o que quer que seja em relação ao meu futuro.

Abordando estes e outros temas, esta exposição, sob a curadoria da antropóloga e investigadora Chiara Pussetti, apresenta os resultados do projecto de quatro anos de investigação: “Excel. Em busca da Excelência” .

As fotografias de Evija Lavinia e Jessica Ledwich impressionaram-me e a série de debates que decorrem até 15 de Outubro na galeria Oriq são tão imprescindíveis como desconfortáveis.

Foi uma experiência tão inquietante que fez nascer um projecto, a quatro mãos, de divulgação e intervenção cultural: “Conviction, not Opinion“.

Algumas das conclusões que registo aqui são precisamente o resultado de uma reflexão conjunta com a minha amiga Carmen Santos.

Apesar de nos sentirmos almas em contínua construção, o nosso lema, hoje, é:

Be Fucking Perfect! Be fucking You!

Se quiserem ser provocados, sigam-nos!


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O Coração Ainda Bate

Para a rentrée, Redmond Barry não teve contemplações e abordou um tema muito doloroso: a rejeição.

Não se trata da rejeição pontual – aquela que nos derruba por uns dias, mas para a qual fomos criando artilharia de resistência – fala-nos da rejeição recorrente, aquela que acontece quando o amor de uma vida nos afasta sistematicamente.

É um tema duro.

Numa relação longa, há períodos de maior desvio e de maior cumplicidade.

Julgo que discernir o momento de persistir do momento de desistir é o grande desafio.

É preciso coragem, honestidade e lucidez para tomar a única decisão que sentimos verdadeira, qualquer que ela seja.

Com a certeza, porém, de que a um afecto unilateral não se chama amor.

Não sei se a dor da rejeição é mais vincada no feminino ou no masculino: no passado, as mulheres aceitaram-na em silêncio, a bem da sua sobrevivência, do “seu bom nome” e da instituição familiar. Tempos bolorentos que já não nos definem…

No século XXI, humanos de todos os géneros já passaram pela experiência de escolher a pessoa errada;

quase todos já ficaram demasiado tempo com a “escolha inadequada”

e outros tentaram, diligentemente, convencer-se de que, com esforço pessoal, essa pessoa poderia ainda transformar-se na certa.

Inês Maria Menezes, numa entrevista com Bernardo Mendonça, leu o seguinte excerto de Hanif Kureishi, do livro Meia noite todo o dia:

“Somos infalíveis na nossa escolha de amantes, particularmente quando precisamos da pessoa errada. Existe um instinto, uma força magnética ou antena que busca o inadequado.

A pessoa errada é obviamente certa para determinadas coisas… Para nos punir, oprimir ou humilhar, para nos desiludir, abandonar ou, pior ainda, para nos dar a impressão de não ser inadequada, mas quase certa, mantendo-nos assim presos no limbo do amor.

Não é toda a gente que é capaz de fazer isto?

As relações íntimas são tão complexas, intensas e voláteis:

às vezes, a pessoa certa metamorfosea-se e torna-se errada;

outras vezes, somos nós que deixamos de ser os certos;

e temos de reconhecer que, algumas vezes, somos nós os inadequados de uma bela história de amor a acontecer (se não fôssemos nós o erro).

Parece que a vida é feita disto: forças magnéticas, inadequações e limbos de amor, êxtase e devastação.

Mas, felizmente, “o coração ainda bate“.

Fotografia: da alemã Corinna Hopmann.

Título do post: roubado ao podcast e ao livro de Inês Maria Menezes, O Coração Ainda Bate.


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Rejeições

Redmond Barry é meu amigo, tem 40 anos, é bonito, culto e inteligente.

Tem tudo para se sentir absolutamente afortunado, mas é possível ser lúcido e feliz?

Fernando Pessoa já há muito deu resposta a essa questão!

Portanto, resta-nos reflectir.

Chegou o momento de dar espaço à perspectiva masculina, neste blog.

O que tens a dizer das tão assombrosas/espinhosas relações românticas?

Rejeições

Certamente que uma das piores emoções pelas quais um ser humano passa advém de uma qualquer rejeição e todos nós já fomos sujeitos, em maior ou menor medida, a várias. Seja numa entrevista de emprego, seja por parte de um grupo de amigos ou devido a um amor não correspondido, quando somos rejeitados um sentimento que pode ir da tristeza à revolta invade-nos o coração e, consoante o caso, pode durar uns minutos, umas horas, uns quantos dias ou até algumas semanas.

Muito pior, todavia, é viver numa constante rejeição que, pelo que me tenho dado conta, é algo que atinge muitos casais. A partir de determinado momento, por variadíssimas causas que me ultrapassam, embora por vezes também sem qualquer motivo aparente, um dos membros do casal desliga-se progressivamente do outro. Deixa de querer ter um momento a sós, de passar ocasionalmente um pôr-de-sol abraçado como se de um casal de adolescentes se tratasse e, claro, deixa inevitavelmente de ter qualquer relação sexual ou tem-nas com uma frequência residual e/ou por achar que deve cumprir uma obrigação. Não faço ideia de qual será a quantidade de casais afetados por este problema, pois os estudos sobre esta matéria sofrem com uma grande variação já que se baseiam em questionários anónimos de autopreenchimento. Ainda assim, estima-se que entre a 10% a 20% das relações de longo prazo um dos membros é rejeitado sistematicamente.

               É para mim muito difícil compreender as motivações de quem rejeita, com exceção de quando se trata de impor algum castigo, vingança sobre o parceiro ou um inegável problema de saúde. Se quem rejeita tivesse um mínimo vislumbre do que causa na outra pessoa, rapidamente tomaria uma de duas ações possíveis. No caso de pretender manter uma relação saudável procurava, por todos os meios e da forma mais célere possível, resolver o problema. A outra opção era libertar o parceiro (ou parceira, pois têm-me chegado vários relatos no feminino) de uma relação que progressivamente se tornará, usando a terminologia woke, tóxica. Se uma rejeição é difícil de digerir, quando é constante toma proporções cumulativas que desencadeiam um conjunto de sentimentos e ações extremamente negativos. A perda de autoestima é inevitável e pode atingir dimensões danosas a um ponto obsessivo, sobretudo porque estes problemas surgem tendencialmente numa fase mais avançada da vida quando os primeiros sinais de envelhecimento físico surgem – perda de cabelo, mudança na cor do cabelo, aumento de peso, perda da dentição, etc. Segue-se uma crescente revolta interna contra quem nos rejeita, correndo-se o risco de se transformar uma pessoa em tempos amada numa entidade abjeta e odiada. Estes sentimentos, todavia, não se circunscrevem ao seio familiar e o rejeitado começa inclusivamente a ter atitudes que não lhe são inatas em todos os meios sociais em que se move.

               Então porque não aceitar, sem dramas, que o amor terminou? É verdade que há sempre muitos encargos conjuntos que, entretanto, se adquiriram – bens móveis e imóveis, filhos, amigos e familiares para gerir –, mas até que ponto se deve arrastar uma situação que leva a uma autodestruição anunciada?   Haverá alguma solução disponível? Aconselho a audição desta entrevista que me parece muito certeira no diagnóstico e desfecho deste tipo de situações.

Rio Ponsul, seco, árido e estéril