No livro de Javier Marías, Berta Isla, a protagonista termina com uma citação de Dickens:
“qualquer criatura humana está destinada a representar um profundo segredo e mistério para todas as outras”. No entanto, “temos muitas pretensões: pretendemos decifrar as pessoas, sobretudo quem dorme e respira junto à nossa almofada”.
Estas são considerações tão inquietantes quanto fascinantes.
É muito mais confortável cristalizarmos um esboço de quem nos rodeia e criarmos uma narrativa (só nossa) que nos permite organizar o círculo social. Ficamos cómodos, arrumados e seguros, mas numa ficção.
É corrente esta tendência falaciosa, a nível pessoal, mas igualmente no âmbito social.
A verdade não tem importância, vendem-nos, diariamente, narrativas e nós já nem sabemos onde começaram as insinuações e suposições que nos encaminharam para uma historieta com “os bons” e “os maus”: quanto mais simples e polarizada for a acção, melhor para as massas.
É um terreno garantido, eficaz, facilmente comercializável e lucrativo, e assim se segue sem se procurar contraditório.
Vemos esse sensacionalismo vazio até nas manchetes dos nossos melhores jornais, sobretudo na sua versão digital e instagramável. O mercado do “clique” assim o obriga.
Numa sociedade polarizada, é fácil acirrar frentes e há quem não perca a oportunidade de ganhar com isso.
Na entrevista ao Expresso, um jornal de referência mas que também ganharia se revisse a sua conta de Instagram, reposta aquando da morte de Javier Marías, o escritor tenta explicar alguns retrocessos civilizacionais que observamos pela Europa.
[…] Como lê a ascensão da extrema direita e dos populismos?
É muito preocupante e perigosa. E tem a ver com o ressentimento latente na maior parte das pessoas. Algumas mais, outras menos, todas estão insatisfeitas ou invejam algo, sentem que o seu trabalho não foi suficientemente reconhecido ou veem que os outros vivem melhor. Isso nem sempre domina a personalidade, mas em certos momentos pode dominar. E quando há políticos que avalizam ou atiçam o ressentimento, ele salta facilmente. Ora, se este se tornar predominante nas relações humanas, o perigo é imenso, em qualquer época e lugar. No outro dia, li um artigo de uma brasileira que contava como, desde a vitória de Jair Bolsonaro, as pessoas se comportam como se tivessem carta branca. O que dá medo não é só este indivíduo que foi eleito, são os 56% dos votos que o elegeram. Os homossexuais e os negros estão a ser abertamente ameaçados. Isto leva a pensar que as pessoas, no momento em que veem legitimadas as suas paixões mais baixas, sentem-se no direito de atacar, insultar e ameaçar. De não esconder essas baixas paixões.
“Baixas paixões” é uma expressão dura.
É muito antiga. E podemos voltar a Shakespeare: basta que um Iago te segrede ao ouvido (ou com um megafone) as razões para alimentares o ressentimento, para que este apareça. É um sentimento muito fácil de criar — e é o que, em grande medida, ocorreu na Guerra Civil Espanhola. Os meus pais viveram-na aos 20 e poucos anos, e ouvi-os contar muitas histórias deste tipo. Além das questões políticas e ideológicas, foi como abrir a caixa dos trovões e dar licença às pessoas para cobrarem as suas vinganças.
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(“Baixas paixões” é uma expressão bíblica retomada por escritores como Shakespeare; de todas elas, para este escritor, o medo era a mais aberrante. Na mitologia, surge a figura de Baco, como agregador de todas as “paixões baixas”. Tal como Javier Marías, preocupa-me muito o discurso de figuras com responsabilidade política que legitimam o assumir, sem pudor, das “paixões baixas”. Noutra acepção, as paixões carnais, com altos e baixos, são as únicas saudáveis.)
A fotografia é da dupla Agnes Kulesza e Lukas Pik.