Depois do amor, talvez a emoção primária da humanidade seja o medo.
Ainda acredito nesta sequência, mas receio que estejamos a assistir à ascensão do medo.
Por uma questão de sobrevivência, receamos todos os perigos que nos possam levar à morte.
O medo da morte foi profundamente explorado pelas religiões ao longo dos séculos e a Igreja Católica não foi excepção. De tal forma, que associou o natural medo da morte ao medo da vida: se viveres demais, se não (te) temeres, sofrerás as penas do Inferno. Se fores penitente, nunca morrerás; o Paraíso esperar-te-á.
Felizmente, esta premissa católica já foi desmentida por vários Papas (uns mais enfaticamente do que outros) e escusamos de recear o fogo eterno.
Os medos, no entanto, rodeiam-nos: alguns são herdados, muitos são diariamente inventados e empolados pelos governos (mais ou menos laicos) e pela comunicação social, para que a rebeldia seja dominada e o nosso pensamento e a ação paralisem.
O medo torna-nos ratos.
E os ratos desprezam-se e esmagam-se.
É uma das emoção que tento combater todos os dias.
Não sou uma pessoa corajosa – sou, na melhor das hipóteses, uma corajosa acidental.
Somente quando me enfureço perco o medo; se fosse personagem de um filme seria a figurante meia louca que avança pelo campo de batalha sozinha, apenas porque está tão indignada que encolerizou. Não há heroísmo no acto.
Este poema de O´Neill é triste e, infelizmente, premonitório.
Talvez seja por tudo isso que já não é necessária a imagem católica do Inferno.
Chegam-nos os medos (e medinhos) quotidianos…
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidosO medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a delesVai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiadosAh o medo vai ter tudo
tudo(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
*
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O’Neill, in Abandono Viciado

Imagem do fotógrafo Daniel Coburn, “Becaming a spector”.
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