“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Ternura negra

Uma das contas de Instagram que sigo diariamente a é do brasileiro Ricardo Lombardi.

Tem uma livraria de livros usados, em São Paulo, com o nome Desculpe a Poeira, nome inspirado no epitáfio da escritora Dorothy Parker: “Excuse my dust”.

Para além de admirar este projecto, ainda encontro na conta do sebo (sebo significa, no Brasil, uma loja de livros usados, sensivelmente como o nosso alfarrabista) poemas como este de valter hugo mãe.

Doctor love mariana a miserável

uns mortinhos pequenos

tenho uns caixõezinhos no coração que me
nasceram quando partiste. se regados com
cuidado, brotam mortos como flores negras pelo
interior das veias, que me assombram o sangue, corando
a minha pele numa vergonha e sentindo medo

são uns mortinhos pequenos que muita gente
nem sabe que existem. acreditar em fantasmas é
só possível para quem tem muito amor e recusa a
pequenez da vida sem continuação

tenho uns caixõezinhos no coração que se
abrem a toda a hora. quando me deito, ouço-os
embatendo de encontro ao peito, talvez com vontade
de ir embora, talvez só por ser o amor tão estreito

mariana a miserável

Não resisti e tive de ilustrar o post, e sobretudo o poema de vhm, com Mariana, a Miserável.


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Japão

A cultura japonesa influenciou-me desde cedo; antes de eu saber onde era o Japão.

Perdi-me, nas montanhas da Heidi, com As Aventuras de Tom Sawyer, com a Ana dos Cabelos Ruivos, Marco, Dartacão (série espanhola mas com animação japonesa), Abelha Maia e tantos outros filmes de animação japonesa que preenchiam aquela sagrada hora diária de desenhos animados.

Voltei à animação na idade adulta, com o estúdio Ghibli e com filmes vistos cinquenta vezes (até quase aprender japonês…).

Entretanto, fui encontrando, sem planear, filmes que marcaram momentos importantes da minha vida, como Disponível para Amar, Depois da Vida  ou O que eu mais desejo.

Penso agora que não tenho um escritor japonês de eleição, lapso que vou tratar prazerosamente de superar. Kazuo Ishiguro ganhou o Nobel da Literatura em 2017;   Kenzaburo Oe, em 1994; e Yasunari  Kawabata, em 1968. Yukio Mishima não ganhou mas já está na minha lista também. E o conhecido Haruki Murakami também. Uma licença sabática dava mesmo jeito!

Talvez por ter este substrato nipónico a fermentar há tantos anos, fiquei encantada com a Kiri.

kiri wearjapan winter 2018

Kiri é designer, japonesa e mede 1,59 m.

Foi só o que percebi do site Wear Japan.

De resto, é catita e eu, sem esforço, vir-me-ia assim vestida…

No Alentejo ou no Japão.

winter2019

wearjapan winter2018

Cestas incluídas!

Inverno 2018 Japan white skirt


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Anti-social

A solidão acomete-nos quando não encontramos, pelo caminho, pessoas que tenham uma visão do mundo parecida com a nossa.

Acontece-me muitas vezes.

Por isso, são tão importantes na minha vida pessoas como o Miguel Esteves Cardoso e a minha Teresa.

Mais a minha prima, claro, que partilhou comigo esta crónica.

A solidão nova

Começo a odiar o tempo que passo sozinho sem ela. É uma sensação nova para mim, a solidão.

 

Casámos há dezoito anos. Estamos escondidos. Quanto mais nos amamos mais temos de fugir. Somos como aqueles que não têm para onde ir.

Começo a odiar o tempo que passo sozinho sem ela. É uma sensação nova para mim, a solidão. Sempre tive medo dela. Começo a saber que tinha razão.

É uma consequência inesperada do amor, a solidão. Eu quero estar sozinho – mas é sozinho com ela, sozinhos os dois, eu dentro de um livro, ela dentro doutro e mais nada a passar senão a brisa. Soa mal porque é verdadeira esta malvadez de não querer mais nada.

Começo também a perceber, depois de tantos anos de amor contínuo, que a minha alma, a minha maneira de ser, a minha personalidade, a minha solidão particular, não existem só em mim. Existem através da Maria João, da maneira como ela trata comigo, da maneira como somos um para o outro.

Espero que também seja assim com a Maria João. Tenho medo. Sou bem-vindo ao mundo do amor, do medo e da solidão.
Carmen_Triana_Primer_Amor
A crónica do MEC de 30 de Setembro e a fotografia de Carmen Triana (do IGNANT).


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Os outros

Ler entrevistas é aprender com os outros.

Durante muito anos, ouvi devotamente o “Pessoal e Transmissível”, de Carlos Vaz Marques, na TSF.

Mais recentemente, tenho lido as entrevistas de Anabela Mota Ribeiro, recentes e mais antigas.

É enriquecedor perceber que há pessoas que cresceram mais do que nós.

Ana Luísa Amaral é escritora e professora na Faculdade de Letras do Porto.

Entrevistada por Anabela Mota Ribeiro, faz uma distinção entre transgressão e subversão, a propósito da vida e da escritora Emily Dickinson.

“Continuo profundamente fascinada com Dickinson. As suas indisciplinas, e são muitas, não são feitas via transgressão. Não rompe, não fractura abertamente. Subverte. A subversão é construir uma versão sob a versão existente e fazer com que essa versão existente se esboroe. É a implosão, é a explosão dentro. Essa ideia de corrosão faz-se sentido.”

Há momentos para transgredir, mas tento que a minha vida seja marcada pela subversão.

ignant

Esta imagem subversiva é do blog IGNANT.

 

 


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Ratos

Depois do amor, talvez a emoção primária da humanidade seja o medo.

Ainda acredito nesta sequência, mas receio que estejamos a assistir à ascensão do medo.

Por uma questão de sobrevivência, receamos todos os perigos que nos possam levar à morte.

O medo da morte foi profundamente explorado pelas religiões ao longo dos séculos e a Igreja Católica não foi excepção. De tal forma, que associou o natural medo da morte ao medo da vida: se viveres demais, se não (te) temeres, sofrerás as penas do Inferno. Se fores penitente, nunca morrerás; o Paraíso esperar-te-á.

Felizmente, esta premissa católica já foi desmentida por vários Papas (uns mais enfaticamente do que outros) e escusamos de recear o fogo eterno.

Os medos, no entanto, rodeiam-nos: alguns são herdados, muitos são diariamente inventados e empolados pelos governos (mais ou menos laicos) e pela comunicação social, para que a rebeldia seja dominada e o nosso pensamento e a ação paralisem.

O medo torna-nos ratos.

E os ratos desprezam-se e esmagam-se.

É uma das emoção que tento combater todos os dias.

Não sou uma pessoa corajosa – sou, na melhor das hipóteses, uma corajosa acidental.

Somente quando me enfureço perco o medo; se fosse personagem de um filme seria a figurante meia louca que avança pelo campo de batalha sozinha, apenas porque está tão indignada que encolerizou. Não há heroísmo no acto.

Este poema de O´Neill é triste e, infelizmente, premonitório.

Talvez seja por tudo isso que já não é necessária a imagem católica do Inferno.

Chegam-nos os medos (e medinhos) quotidianos…

 

O Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidosO medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a delesVai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiadosAh o medo vai ter tudo
tudo(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O’Neill, in Abandono Viciado

ignant-photography-daniel-coburn-becoming-a-spector

Imagem do fotógrafo Daniel Coburn, “Becaming a spector”.

 


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Queixar

ignant-24hours-daniel-gebhardt-de-koekkoek

Queixas de um Utente

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

 

José Miguel Silva, in Ulisses Já Não Mora Aqui

ignant-daniel-gebhardt-de-koekkoek
Que subidinha danada!
Mais uma utente descontente!
(Imagens do blog IGNANT!)