“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Se eu fosse a ti

Segundo os últimos dados da DGS, o número de infectados continua a aumentar e, desta vez, o Alentejo não sai ileso. Não sei se é por isso, mas tenho sentido as pessoas muito mais tensas e com o modo conflituoso ativado.

Também pode ser porque voltei a trabalhar fora de casa, saí da minha doce bolha-lar, caminho pela rua e vejo mais seres taciturnos, irritadiços, impacientes e inquiridores.

Li que a pandemia irá prolongar-se no tempo e que os cuidados a que estamos obrigados agudiza os espíritos potencialmente neuróticos.

O vírus assusta-me, mas também tenho medo de ser atingida por esta neurose social.

Para já, noto que, contrariamente ao que eu julgava no início da pandemia, estamos a perder a empatia e o sentido de humor.

Será porque estamos literalmente amordaçados e deixámos de ver o sorriso do outro?

Será que a falta de abraços está a afectar irremediavelmente a nossa saúde mental?

Há muito tempo que não ouço uma gargalhada fora de minha casa. Gritos coléricos vindos da rua, infelizmente, tenho ouvido com alguma frequência.

Juan Vicente dá-nos instruções para atravessarmos o deserto do mundo.

E dá-nos uma chave: o humor.

Se perdermos essa habilidade, perderemos uma grande parte da nossa capacidade de resistir e uma das nossas características mais humanas.

Se Eu Fosse A Ti

Se eu fosse a ti amava-me, telefonava,
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum “mas” a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia-me que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.

Juan Vicente PiquerasInstruções para Atravessar o Deserto

Fotografias de mergulhos: IGNANT.


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Como cortar relações

As relações que nos prendem aos outros iniciam-se com fios finíssimos e transparentes.

Com o tempo, a teia ramifica-se, torna-se vívida e flexível, se tivermos inteligência e sorte; ou fica turva e endurecida.

Se é verdade que a primeira teia – de constelações amorosas e divinas – nos orientam a jornada e nos salvam, a segunda – com a dureza do betão cinzento – impede-nos de brilhar. São, no entanto, estes laços calcinados os mais difíceis de romper. Prendem-nos a relações tóxicas, vínculos que, pela sua perniciosa embriaguez, se tornam muitas vezes aditivos e inabaláveis.

Como todos os desafortunados, já tentei usar tesouras para cortar as ligações com amores, amigos e familiares. Não sei qual é o processo mais difícil, mas o resultado, após a primeira cicatrização, é sempre libertador.

Estranhamente, nas ruturas com os amantes, encontramos muitos abraços solidários; nas separações de amigos tóxicos, não há a mesma empatia com uma dor amiúde incompreendida; nos cortes com familiares, encontramos recriminações. A família é para a vida, ainda que nos cilindre na viagem.

Adriana Lisboa, escritora brasileira vencedora do Prémio José Saramago, herdeira do Nobel, dá-nos algumas ferramentas para nos afastarmos de quem, (in)voluntariamente, nos destroça.

COMO CORTAR RELAÇÕES

Às vezes tesoura cega basta
noutros casos é preciso usar os dentes
o fio de uma peixeira a minúcia
de um canivete suíço
às vezes a substância é tão frágil que
com a ideia de um corte se desmancha
noutros casos há que cortar os mares

William Shakespeare, em Hamlet, aponta a alternativa digna, após o desmoronamento inicial.

Quando a Rainha Gertrudes acusa Hamlet de ter partido o seu coração em dois, a resposta de Hamlet é fria, mas rigorosamente justa:

“Pois então jogue fora a pior parte dele,

E viva na pureza com a outra metade.”

O quadro é de Ignacio Diaz Olano: encontra-se no Art Renewal Center Museum. Se nos inscrevermos no site, temos direito a contemplar todas as obras com alta resolução.


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Rumo

É tão urgente rememorar os valores de Abril como é premente celebrar as conquistas dos últimos 50 anos e refletir acerca do que nos falta alcançar.

A Revolução delineou o projeto de Futuro de Portugal e registou-o na Constituição de 1976: cabe-nos cumpri-la, em pleno, num desígnio nacional.

Hoje, exprimimo-nos sem censura, o que não significa que todos os que obtêm protagonismo emitam discursos válidos ou lúcidos. Felizmente são livres para fazê-lo.

Os nostálgicos do passado talvez tenham apenas saudades de um falecido de quem já esqueceram os defeitos, ou talvez nunca o tenham conhecido bem, se tivermos em conta que a maioria dos votantes de extrema direita são jovens.

O desprezo pelas Humanidades, consideradas tão inúteis por quem tem como padrão de sucesso um bolsão de euros, gera estas consequências: o estudo da História foi relegado para os cursos de Línguas e Humanidades e, por conseguinte, a ignorância relativamente a um passado recente grassa.

Nasci pouco depois da Revolução, mas fui educada por pais, professores e familiares feridos por 48 anos de opressão, silêncio, iliteracia, pobreza e desconfiança.

Apesar das mudanças constitucionais, destroços do “modus vivendi” pairavam na minha infância:

a mulher continuava a exclusiva cuidadora do lar; os sonhos dos pobres eram moderados; a autoestima nacional mantinha-se humilde; a subserviência dos pouco remunerados/letrados perante os “doutores” prevalecia; a arrogância de quem tinha duas moedas no país dos que nada possuiam também, assim como a desconfiança perante o que era diferente, a intolerância perante a diversidade humana, o medo de uma constipação ou o abandono escolar.

Cinco décadas volvidas, conseguimos concretizar inúmeras mudanças, num esforço coletivo louvável: somos outro país. Temos abutres na democracia (como tínhamos na ditadura), a nossa democracia permanece imperfeita, mas hoje as máscaras caem publicamente e os portugueses não querem jamais regredir.

Não voltaremos a um tempo em que a PIDE aterrorizava quem não andasse no trilho marcado.

O carácter sufocante do regime assoma no primeiro pilar da PIDE: o “bufo”, o informador, o cidadão obediente e espião que deletava o vizinho, em troca de uma nota ou de uma vaga de emprego para o filho. O segundo pilar era a tortura.

No documentário “Deus, Pátria, Autoridade“, o cineasta Rui Simões entrevista o diretor da PIDE, Silva Pais, a partir do minuto 35. Uma das figuras mais sombrias do Estado Novo confirma, com orgulho, que a polícia política portuguesa era altamente considerada na Europa, pelos seus métodos/organização, e contava com largas centenas de colaboradores informais.

Outra chaga filicídia expõe-se nos 13 anos de guerra:

10 000 militares portugueses mortos, 30 000 jovens regressaram com uma incapacidade física e nunca se contabilizaram todos os que ficaram com traumas e perturbações psicológicas.

No regime democrático há valores inquestionáveis: a Liberdade, os Direitos de TODOS, a Igualdade, a Equidade, a Educação, a Saúde e a Paz.

Podem surgir vozes discordantes, pode haver quem pretenda outra realidade, mas viver em Democracia garante-nos a continuação desses valores, independentemente de movimentos e crises circunstanciais: quando escolhemos a Democracia, sabemos que não é uma vaga ideológica ou uma crise que nos coloca em causa. É essa a garantia da Democracia! Foi essa a grande conquista dos capitães de Abril. Preservá-la é a nossa mais distinta missão!

Começamos as celebrações à meia-noite.

Sérgio Godinho espera-nos na Praça do Giraldo!

Fotografia de Eduardo Gageiro desta revolução sem sangue (por parte dos revolucionários): cravos em canos de espingardas é a lição que Portugal deu ao mundo. Não é pouco.


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Mitos de ouro

A espécie humana é a espécie que necessita de histórias para viver.

Acordados, prestes a adormecer ou a dormir, brilhamos com narrativas simples ou elaboradas, cómicas ou trágicas. Durante o sono, somos todos autores e criamo-las para o nosso cérebro continuar reluzente e nos proporcionar uma noite pausada, a partir de sonhos originais e emocionantes.

Bem despertos, tecemos as nossas narrativas pessoais e, também por isso, é tão difícil apurar a verdade acerca de um acontecimento: mesmo nos mais anódinos episódios familiares ou amorosos, cada um guarda a sua versão. Raramente coincidem.

Yuval Noah Harari defende que foi esse nosso impulso narrativo que nos fez evoluir: ao falarmos da vida dos outros, criámos laços e aliados que nos fizeram aperfeiçoar o trabalho em equipa e o espírito de grupo. A elaboração de mitos coletivos permitiu, inclusivamente, que nos organizássemos em cidades e nações.

As narrativas mitológicas greco-romanas são responsáveis por esculturas e quadros. Influenciram também a joalharia.

Em 1900, René Lalique, inspirou-se no rapto da belíssima Dejanira pelo centauro Nesso. O marido, Héracles (Hércules para os latinos), salvou-a, mas mais tarde apaixona-se por Íole e abandona Dejanira. A guerreira usa o “filtro do amor” oferecido pelo centauro Nesso para reconquistar Héracles. Claro que nunca devemos confiar em centauros: não era uma poção afrodisíaca! Esta droga, colocada na túnica de Héracles, provocou-lhe uma queimadura que o devorou e o conduziu ao suicídio. Dejanira, ao ver o que sucedeu ao amado, também se suicida. No entanto, Héracles é arrebatado para o céu, como recompensa pelos seus doze trabalhos. Quanto a Dejanira ficou com Lalique e ainda está em Lisboa.

Calouste Gulbenkian ficou tão impressinado com a a peça de René Lalique que a adquiriu em 1903.

Mais antigos são os brincos – cerca de 330–300 a.C. – que representam o rapto do pastor Ganimedes, sobrinho de Cleópatra. Um jovem tão belo que Zeus não lhe resistiu: transformou-se em águia e raptou-o, tendo-o tornado escanção da sua dose diária de néctar.

Para compensar o pai de Gaminedes, Zeus oferece-lhe cavalos divinos ou uma cepa de ouro.

Para apreciarmos esta obra grega já temos de viajar até Nova Iorque, uma vez que estas relíquias se encontram no MET – The Metropolitan Museum of Art.

Eu soube da existência destas delicadas peças através do professor José Pedro Serra e do seu programa Mythos, ainda disponível aqui.

As peças de joalharia que se podem ainda imaginar com Deméter e Perséfone, que finalmente nos trouxeram a Primavera! Com Circe e Medusa! Ou com Cassandra e Apolo!


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Meteorologia sentimental

O tempo está instável.

Quem o confirma é Jorge Sousa Braga.

Ai de mim que vou para Noroeste!

BOLETIM METEOROLÓGICO

Céu muito nublado   vento

Fraco moderado de sudoeste

Soprando forte nas terras

Altas   aguaceiros em especial

Nas regiões do Norte e Centro

E que serão de neve nos

Pontos mais altos da Serra

Da Estrela e no teu coração.

Com a alma preparada para a Primavera, surge agora este volte-face.

Já em 1984, Jorge Sousa Braga anunciou:

“Todos aqueles que nos primeiros dias de Março
perscrutavam atentamente o céu
ficaram desapontados,
este ano, as andorinhas
chegarão atrasadas
devido a uma greve dos controladores aéreos.”

Com tantas contrariedades pelo mundo e no nosso retângulo, era óbvio que uma greve, uma lei anti-imigração, ou uma bomba, impediriam as andorinhas de trazer a Primavera. Mas os poetas nunca se enganam.

Aguardo ansiosa pelas novidades de abril, previstas no poema “A greve dos controladores de voo”:

“Notícias da última hora:
depois de satisfeitas as principais reivindicações
foi levantada às dezoito horas tmg
a greve dos controladores de voo”


Elas estão a caminho!

Votos de uma Páscoa Feliz!

Fotos dos suiços Arnaud Ele e Nadia Tarra.




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A tua Ítaca

Ítaca é a terra natal de Ulisses, a ilha do herói da Odisseia de Homero.

Ítaca representa o objetivo, a motivação que o leva a viajar pelo mundo, é o lar que o espera, após a grande aventura.

Numa perspetiva universal, cada um de nós caminha para Ítaca, cada um de nós constrói essa cidade íntima, a “casa” para onde regressaremos, depois de tantos obstáculos e testes que temos de vencer na vida. O percurso que fazemos ao longo dos anos define o “lar” que nos aguarda.

Se o périplo for realizado com sabedoria, maturidade e ética, mais belo será o destino aonde regressaremos. Cicatrizes e sombras serão inevitáveis, mas a luz e a beleza dependem das nossas escolhas.

Constantine P. Cavafy orienta o nosso percurso e alerta-nos para que sigamos sem precipitações.

Quantos portos nos aguardam, quantos encontros e perfumes subtis!

ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria- nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola,

âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Conheci este poema no programa Mythos – RTP2 – do helenista José Pedro Serra.

Neste episódio, o professor explica-nos (parafraseando-o) que Ítaca, o porto seguro, não existe se não a formos construindo, resta-nos a viagem: só a jornada pode tornar-nos sábios.

Já é muitíssimo ter pensamentos elevados;

já é muitíssimo compreender que não existem Cíclopes, se os não trouxermos como o medo na alma;

já é muitíssimo permanecer com uma alma nobre.

O pior inimigo dessa aspiração – o inimigo com quem não é possível estabelecer qualquer negócio – é a banalidade, a vulgaridade. Na palavra, no gesto, nas aspirações ou na política, nada é pior do que a banalidade; é a banalidade o tentador lamaçal que tudo destrói.

Se há regime que obriga a esta grandeza é justamente o regime democrático, porque com rigor e justiça não quer que ninguém perca a viagem apenas porque não lhe foi concedido um remo.

Esta mensagem do Professor José Pedro Serra é a inspiração que me faltava para o ato eleitoral de domingo. Quanta banalidade (ou vulgaridade!) nos rodeou nas últimas semanas!

O poema é uma tradução de Jorge de Sena.

O autor, Constantine P. Cavafy (Kavafis), nasceu em Alexandria,  em 1863, e faleceu na mesma cidade, em 1933.

A fotografia é da grega Mara Lazaridou.


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O medo é um tenente que faz a ronda

O medo é a mais eficaz forma de opressão de um povo.

Tem eficiência historicamente comprovada, quer seja instigado devido a um vírus, contra um grupo étnico, uma nação, ou devido a uma ideologia política. Nasce, geralmente, de uma mentira e, como um rastilho, torna-se um facto que aterroriza e paralisa o pensamento.

Na intimidade, o meu maior medo é não viver a minha verdade em pleno. Honrarmos a nossa essência talvez seja, no fundo, a razão da nossa existência.

No programa Raízes e Frutos – RTP2, descobri o meu segundo maior receio: enfrentar o julgamento da minha filha. Numa ingenuidade desarmante, as crianças (e recém-adolescentes) questionam as nossas escolhas e percursos sem pudores, nem cinismos; são muito astutos e implacáveis, também. O entrevistado referiu exemplos tão comezinhos como ter deixado de consumir produtos que colocam em causa a sobrevivência de algumas espécies; sabia, a priori, que o filho não iria compreender que o pai contribuisse, de forma consciente, para a extinção de alguns primatas, quando a alternativa era tão simples – deixar de comprar um produto fútil.

Quem contacta com crianças sabe que eles não concebem sequer certas insanidades adultas e questionam as hipocrisias sociais que nós damos por consolidadas.

O olhar de um filho pequeno pode ser uma assustadora, mas tremendamente lúcida, “bitola ética de comportamento”.

Quanto aos medos incutidos, Natália Correia escreveu “Cântico do País Emerso” e ofereceu-nos a mais inesquecível definição de medo:

Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta…
Os revoltantes fazem as contas de somar.

Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;

Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora

Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;

Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres

E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.

Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.

E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.

Só a reação, o sentido comunitário e o ativismo constantes impedirão um povo de se transformar neste retrato de alma desleixada:

Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;”

O embarque é agora!

Mia Tomé e Mário George Cabral musicaram este poema.

O retrato dos corpos flutuantes é da pintora Calida Rawles.


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Amarra a tua carruagem às estrelas!

Uma das propostas para o novo milénio, escritas por Italo Calvino e discutidas no programa de Anabela Mota Ribeiro, “Seis Propostas para este Milénio” – RTP3, é a Leveza.

A Leveza entendida como desapego e libertação de todas as opressões, quer sejam as provocadas pelas camas de Procrustes que nos subjugam, quer as resultantes da evidente crueldade humana e das suas insanas guerras.

As primeiras são de índole individual; as segundas são subjugações coletivas.

Esquecemos, com frequência, no final do dia, que a nossa alma é entretecida com pequenos fios que exigem os nossos cuidados mais amorosos. É esta a metáfora do helenista João Pedro Serra. Na verdade, somos feitos de pó das estrelas e não da poeira da Terra.

Acredito que é essa a nossa missão: desapegar da matéria, dos rancores, das fúrias e, por outro lado, alimentarmo-nos das mais etéreas aspirações celestes. É um caminho difícil de seleção e rejeição constantes. As insónias são alertas divinos de que não estamos no caminho certo.

A ciência explica que a nossa condição é móvel e leve: basta que nos consciencializemos do segundo que passou. Neste segundo, deslizámos 30km. Nem demos conta mas explicou o físico Carlos Fiolhais (também no programa de Anabela Mota Ribeiro) que a Terra movimenta-se a 30km/segundo. Não podíamos ser mais ligeiros…

Esta fotografia foi apresentada pela artista plástica Ângela Ferreira.

De Yves Klein, chama-se “Leap into the Void” – 1960. Encontra-se no Metropolitan Museum of Art e retrata o próprio Yves Klein a voar numa rua de Paris.

A frase que deu o título a este texto é do pai de um dos entrevistados do programa “Raízes e Frutos” – RTP2.


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Que sorte, a de Cinderela?

Reencontro, nos poemas de Ana Luísa Amaral, a minha relação com a minha filha e com o mundo.

O poema “história politicamente incorrecta para quem é mais pequenino” poderia ser para a Beatriz, se ela ainda fosse pequenina. Mas a Beatriz tem 13 anos e, obviamente, é a adolescente mais recente do universo.

Às vezes, pelas 22h30, esquece-se da nova condição de rebeldia e encosta a cabeça no meu ombro.

Eu cemicerro os olhos e beijo-lhe a testa.

Volta a paz roubada ao meu coração.

história politicamente incorrecta
para quem é mais pequenino

Se eu calçasse o 33
era muito boazinha
falaria aos passarinhos
ia ao baile disfarçada
de princesa


E conhecia os pais dele
e dançaria com ele
até quase à meia noite
convencida de que aquilo
era o amor


Se eu calçasse o 33
perderia o sapatinho
e ficaria sem fôlego
de correr desaustinada
ao longo da escadaria. Que maçada!


Se eu calçasse o 33
tinha uma madrinha-fada
a dar-me longo vestido
lantejoula de casada
e servia-me o sapato
de cristal
Mas eu calço o 39
e quem se casou foi ela
a do pezinho pequeno
e olho de Cinderela


Sorte a dela!
Que a Anastácia e a Griselda
ficaram ali sozinhas
sem passarinhos, só ratos
e dois gatos
que não sabem transformar-se
em carruagem


E eu sozinha aqui fiquei
cometendo arte menor,
a de transformar palavras
no que soa ser amor
mas só soa ser amor


Que sorte, a de Cinderela!
Sorte a dela?


É que (diz a outra história,
a feminista)
na noite do casamento,
já depois das badaladas
entre despir o vestido
e descalçar sapatinho
de cristal


o príncipe transformou-se
em rã verde e trapezista
e de veneno mortal
e desatou a morder-lhe

o dedo grande do pé

De bem pouco lhe serviu,
a Cinderela,
pezinho de 33 –

Como se vê, as cinderelas têm vidas aborrecidas e unhas dos pés roídas por rãs.

Não vislumbro pior destino.

Que os teus pés se mantenham tão sãos como o teu cérebro e te levem a correr o mundo!

Estou certa de que ficará melhor!


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Dessa náusea, como colher a flor?

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto era funcionário público, assim como o mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Ambos refletiram o quotidiano nos seus poemas, assim como também neles verteram a maior máquina trituradora de vontades: a burocracia, a obsessão dos latinos.

O poema “Difícil ser funcionário” é dedicado a Carlos Drummond de Andrade que, no poema “Confidência do Itabirano”, já chorava:

“Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!”

Em Portugal, no setor público, o Simplex tarda a implementar-se. Sem um papelinho nas mãos, ficamos órfãos à mercê da “palavra de honra” de qualquer um. Ora já se sabe que “palavras leva-as o vento” e “mais vale um pássaro na mão…”, portanto, seguimos este trucidante labirinto burocrático e, se não morrermos afogados em papéis, pelo menos ficamos sem energia para ideiazinhas inovadoras que mudem a máquina, o que é sempre vantajoso para quem lucra quando se mantém tudo  e x a t a m e n t e na mesma.

                       .

Difícil ser funcionário

Nesta segunda-feira.

Eu te telefono, Carlos

Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia

Que me deixa assim,

Cinemas, avenidas,

E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,

O luto desta mesa;

É o regimento proibindo

Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara

Tanta roupa preta;

Tão pouco essas palavras

— Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina

Que nunca escreve cartas;

Há uma garrafa de tinta

Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,

As caixas de papéis:

Túmulos para todos

Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto

De gravata de cor,

E na cabeça uma moça

Em forma de lembrança

Não encontro a palavra

Que diga a esses móveis.

Se os pudesse encarar…

Fazer seu nojo meu…

Carlos, dessa náusea

Como colher a flor?

Eu te telefono, Carlos,

Pedindo conselho.

                        .

Em 1943, João Cabral de Melo Neto designa a burocracia como: “caixas de papéis, /túmulos para todos/ os tamanhos de meu corpo”.

Com as folias carnavalescos a aproximarem-se, Caetano Veloso descreve a burocracia como “túmulo do samba”.

António Ramos Rosa, empregado numa firma comercial, já tinha suspirado acerca da estreiteza das ruas dos funcionários apagados, no poema “O funcionário cansado”.

Que nos salve sempre o “olho lírico na gaiola do quintal em frente”!

A Carta-poema de João Cabral de Melo Neto para Carlos Drummond de Andrade, de 29/9/1943, foi escrita em papel timbrado da “Presidência da República – Departamento Administrativo do Serviço Público”, órgão em que João Cabral trabalhava como assistente de seleção. A carta foi publicada em “Cadernos de Literatura Brasileira”, vl. 1, 1996, pelo Instituto Moreira Salles, de São Paulo.

Fotografias: funcionários solitários das ruas de Tóquio, pelo fotógrafo Hiroharu Matsumoto.


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Próxima estação

A tristeza associada ao frio e à falta de luminosidade está catalogada como “desordem afetiva sazonal”(seasonal affective disorder-SAD). Diagnostiquei-me. Há anos que fico em desordem no mês de janeiro!

Bem que prometo adicionar cor ao frio, mas estas cinco segundas feiras estragaram-me os planos.

Consegui, nos dias bons, aproximar-me de um pastelinho, para tentar aclarar a obscura neurose.

                       .

Ainda investi num axadrezado british, mas com tão pouca convicção que pouco o vesti.

Para coroar o desnorte, cortei o cabelo como a menina da foto.

Fica o lembrete para o futuro: nunca cortar o cabelo em plena SAD: bem basta o emaranhado que vai dentro da cabeça…

Ainda assim, menos gótica do que o costume, voltei à formula conhecida: sem crina e sem irreverência, numa monotonia próxima da hibernação.

                        .

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Neste janeiro malfadado, nem me aproximei do branco neve.

Com um fevereiro que começa tão ameno e luminoso, os níveis de serotonina estabilizarão, assim como o comprimento dos casacos.

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Se me entusiasmar, ainda vou a um mix de padrões para agitar os dias.

As fotografias são do Pinterest.

A neurose está quase a derreter com este sol auspicioso.