“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Se eu fosse a ti

Segundo os últimos dados da DGS, o número de infectados continua a aumentar e, desta vez, o Alentejo não sai ileso. Não sei se é por isso, mas tenho sentido as pessoas muito mais tensas e com o modo conflituoso ativado.

Também pode ser porque voltei a trabalhar fora de casa, saí da minha doce bolha-lar, caminho pela rua e vejo mais seres taciturnos, irritadiços, impacientes e inquiridores.

Li que a pandemia irá prolongar-se no tempo e que os cuidados a que estamos obrigados agudiza os espíritos potencialmente neuróticos.

O vírus assusta-me, mas também tenho medo de ser atingida por esta neurose social.

Para já, noto que, contrariamente ao que eu julgava no início da pandemia, estamos a perder a empatia e o sentido de humor.

Será porque estamos literalmente amordaçados e deixámos de ver o sorriso do outro?

Será que a falta de abraços está a afectar irremediavelmente a nossa saúde mental?

Há muito tempo que não ouço uma gargalhada fora de minha casa. Gritos coléricos vindos da rua, infelizmente, tenho ouvido com alguma frequência.

Juan Vicente dá-nos instruções para atravessarmos o deserto do mundo.

E dá-nos uma chave: o humor.

Se perdermos essa habilidade, perderemos uma grande parte da nossa capacidade de resistir e uma das nossas características mais humanas.

Se Eu Fosse A Ti

Se eu fosse a ti amava-me, telefonava,
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum “mas” a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia-me que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.

Juan Vicente PiquerasInstruções para Atravessar o Deserto

Fotografias de mergulhos: IGNANT.

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Fast Heroes

Um herói é um humano que se eleva e toca na esfera dos deuses.

Só alguns de nós conseguem, muito pontualmente, ultrapassar as paixões baixas (inveja, ciúme, ganância de poder, ambição material) e lutar por valores e interesses colectivos.

De resto, perante a misteriosa complexidade da vida, procuramos referências, tanto quanto ansiamos por validação.

Na infância, é premente esta necessidade de criarmos heróis e, por outro lado, de sermos amados pelos adultos.

Na adolescência, suspiramos por exemplos de rebeldia e confronto, geralmente idealizações de pessoas que nem conhecemos, já que o nosso sentido crítico se agudiza contra os adultos que nos rodeiam. Quanto à validação, é perigosamente feita pelos pares, através das mais absurdas tentativas de aceitação.

Chegamos a adultos e pouco muda.

No passado, os heróis eram construídos para nós: desde Ulisses ou Aquiles, na Antiguidade, até aos nossos navegadores quinhentistas, aos galardoados militares, aos combatentes desconhecidos (vítimas da crueldade e ambições alheias), aos chefes de Estado: todas as hipérboles foram ostentadas a fim de legitimar a política de um país isolado e agrilhoado. Para que não escapassem pontas soltas, os livros da escola repetiam a cartilha e formavam o povo. Quanto à validação, estava na classe social imediatamente mais favorecida, na família, no chefe, no vizinho. Se se vislumbrasse um risco fora do desenho, incorria-se no ostracismo ou numa denúncia anónima.

No presente, vivemos um paradoxo: os heróis não o são. Na verdade, já não têm de ser autores de feitos extraordinários – só precisam de ter os valores mais creditados: dinheiro ou visibilidade – o primeiro obtido maioritariamente através de roubos (i)legais; o segundo resultante da difusão nas redes sociais (ser influencer é o suficiente).

Em relação à validação, ela encontra-se na despudorada exibição de bens materiais e, de forma coerente, está também no mundo digital, refletida em likes e visualizações.

Talvez já não nos fabriquem heróis, mas é degradante que estejamos tão pouco exigentes.

Apreciamos aqueles que estão envolvidos nas paixões mais rasteiras e não os raros que se superam eticamente/intelectualmente/esteticamente/afetivamente/socialmente.

Reverenciamos os que são parecidos connosco, em vez de procurarmos a inspiração e referência nos que são melhores do que nós.

Sem subidas, não teremos quedas, mas também não sairemos do lodo.

É preciso um colectivo esclarecido para uma grande construção.

Ao contrário do que nos venderam no passado, nenhum herói surge e edifica sozinho.

Neste poema de Bertolt Brecht, confirmamos que os triunfos são obra de quem carrega os heróis nos ombros.

Perguntas de um operário letrado

Quem construiu a Tebas das Sete Portas?
Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que carregaram as rochas?
E a Babilônia destruída tantas vezes?
Quem a reconstruiu de novo, de novo e de novo?
Quais as casas de Lima dourada
abrigavam os pedreiros?
Na noite em que se terminou a muralha da China
para onde foram os operários da construção?
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a “Invencível Armada” naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?

Tantas histórias.
Tantas perguntas.

A fotografia é de Kin Coedel e faz parte da coleção  ‘Dyal Thak’ , que significa em tibetano conexão ou “mutual ties” ou fios comuns.

Uma excelente tertúlia acerca dos heróis está disponível no meu programa de eleição: Original é a Cultura.


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Corpo

Tiffany ad Le Book

Meu Corpo Teu

Não me ensinaste a envelhecer
Mãe
Nem reparei sequer que envelhecias
Uma vez impacientei-me por não me ouvires bem
e tu disseste simplesmente: “Não vês que a tua Mãe
está a ficar velha?!”
Não via nunca tinha reparado protestei
não aceitei
Só agora compreendo
Agora que envelheces com meu corpo teu
ou que envelheço com teu corpo meu
Habituei-me a ver-te correr ligeira
à frente dos automóveis
a atravessar as ruas fora do risco dos peões
E de repente
sem avisar
a velhice caiu-me em cima

Envelhecias sem reparar
ou não querias pensar nisso
ou não consentias ao corpo esse vagar?

Agora aprendo à minha custa
sem a tua companhia
o que é envelhecer
Se calhar só através desta escrita
me vais ensinando
o que nunca aprendeste

Teresa Rita Lopes


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Pequenas Virtudes

Natalia Ginzburg nasceu em Palermo, em 1916.

No ensaio que dá o nome ao livro, descreve um modelo de educação assente nas grandes virtudes em detrimento das pequenas virtudes.

O que são as grandes virtudes?

Como distingui-las das pequenas?

“No que se refere à educação dos filhos, penso que lhes devem ser ensinadas não as pequenas virtudes, mas as grandes.

Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença pelo dinheiro;

não a prudência, mas a coragem e o desprezo do perigo;

não a astúcia, mas a franqueza e o amor da verdade;

não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação;

não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de conhecer.”

Neste ensaio de Natalia Ginzburg, surgem ainda reflexões que subscrevo e procuro alcançar na relação com a minha companheira de há 12 anos. Não sigo uma cartilha moralista, mas espero sempre que, pelo exemplo e pelos temas discutidos, a Beatriz interiorize a importância de agir com ética.

“A educação não é mais do que uma certa relação que estabelecemos entre nós e os nossos filhos, um certo clima em que florescem os sentimentos, os instintos, os pensamentos.”

“Hoje que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos […] é necessário que nos revelemos, nesse diálogo, tal como somos: imperfeitos; confiantes em que eles, os nossos filhos, não se nos assemelhem, sejam mais fortes e melhores do que nós.

“[…] eles devem saber que não nos pertencem, mas que nós sim lhes pertencemos“.

“Talvez a única possibilidade real que temos de lhes prestarmos algum auxílio na busca de uma vocação, é termos nós próprios uma vocação, que conhecemos, amamos e servimos com paixão: porque o amor pela vida gera amor pela vida.”

Fotografias: do fotógrafo ganense, Prince Gyasi, IGNANT


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Ana Mushell

Todos os anos escolho a minha ilustradora de eleição, geralmente logo nos primeiros meses do ano.

As pessoas impacientes e dadas a arrebatamentos não têm a serenidade necessária para aguardarem por Dezembro para fazerem balanços ponderados…

A ilustradora espanhola Ana Mushell chegou até mim através da minha amiga Carmen.

São ilustrações que estão em perfeita sintonia com o frio introspectivo do Inverno.

Ilustrações que reflectem a melancolia de Janeiro e de um Fevereiro que se adivinha eriçado.

Se a melancolia, a solidão e o silêncio são vitais para a manutenção da minha sanidade mental, também é verdade que precisam de se contrabalançar com convívio (muito) selectivo, estímulo mental e paisagens em movimento.

Por enquanto, tem prevalecido a “tristeza hermosa”, acompanhada de Billie Holiday, um livro, abraços apertados e a salamandra.

Este é o Instagram imperdível de Ana Mushell.

Depois desta pausa da natureza, em que tudo acontece subterraneamente, anseio pelo iminente florescimento exterior!


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Filas de Sonhos

Cautelosamente, vou mostrando à minha filha de 11 anos notícias do mundo.

Coloco o meu filtro, já que os noticiários são cada vez mais grotescos e cospem horrores em catadupa, sem qualquer reflexão prévia ou posterior. Desconheço as consequências desta prática diária à hora de jantar: desesperança paralisante, insensibilidade empática ou ataraxia social?

Os campos de refugiados envergonham-nos enquanto espécie e geram questões, no conforto do sofá, a que eu não consigo responder.

Como é que as crianças passam anos naqueles campos?

Não há respostas que consigamos dar aos nossos filhos, especialmente se pensarmos que integrámos 4,8 milhões de refugiados ucranianos em menos de um ano. Ainda bem que o fizémos, mas esse feito louvável evidencia a inércia e o cinismo evidentes em situações semelhantes.

Sou incapaz de contar à Beatriz o que aconteceu no dia 2 de setembro de 2015 com o pequeno Alan.

O menino tinha 3 anos.

Não consigo explicar-lhe que vivemos num mundo, onde estas tragédias acontecem, sob o olhar gélido dos adultos.

O livro Filas de Sonhos nasceu da promessa de Rita Sineiro, perante a imagem da criança síria, na orla da Turquia.

Conversei muito com a Beatriz enquanto o líamos.

Sobre a guerra que vivemos na Europa e sobre as outras que, embora distantes, nos matam todos os dias.

Falámos de proibições, medos, muros e fronteiras, mas também de generosidade e altruísmo.

Indignámo-nos contra as portas fechadas e os campos de tendas onde tudo falta e onde se espera pelo carimbo azul que permitirá retomar a vida.

Encolhemo-nos perante situações desesperadas e decisões fatais.

Mas nunca consegui contar-lhe acerca do fim do pequeno Alan que deu à costa numa praia da Turquia.

Igor Lebreaud escrevou e encenou a peça “Aqui, onde acaba a estrada”.

Li e relembrei outros momentos vergonhosos da nossa humana existência:

“Espanha, 2014. Polícia dispara balas de borracha e gás lacrimogéneo contra imigrantes que tentam chegar a nado à
praia de El Tarajal, em Ceuta.


Hungria, 2015. Governo conclui a instalação de uma vedação de arame farpado com 41 quilómetros, ao longo da fronteira com a Croácia, para travar o fluxo de imigrantes. Uma vedação semelhante, com 175 quilómetros, havia já sido edificada na fronteira com a Sérvia.


Itália, 2019. Governo proíbe durante três semanas a atracagem do navio Open Arms, que transportava 147 pessoas resgatadas no Mar Mediterrâneo, ao largo da costa da Líbia.


Reino Unido, 2022. Primeiro-ministro anuncia plano para deportar para o Ruanda imigrantes que entrarem ilegalmente no país.


Espanha, 2022. Mais de trezentos imigrantes são agredidos enquanto agonizam ao sol, numa vala encostada à vedação que haviam saltado, entre Marrocos e Melilla. Primeiro-ministro elogia actuação das polícias marroquina e espanhola.


Quando nos lembramos destes acontecimentos, sabendo que são apenas exemplos, percebemos que o conceito de “Europa-fortaleza” está longe de ser uma metáfora. Entendemos melhor quais são os “valores europeus” defendidos por quem governa os países da “Europa civilizada”. Torna-se uma evidência que “a guerra” não começou agora, que “a guerra” não acabou nunca. Apenas parecia mais longe, enquanto as vítimas não eram tidas como “a nossa gente”, enquanto “não atentava contra o nosso modo de vida, o nosso poder de compra e a nossa segurança (incluindo económica).


Talvez um dia alguém peça desculpa pelo que hoje está a ser feito, em nosso nome e por governos que elegemos. Entretanto, o portão está fechado e há gente a morrer.”

Este é um excerto da folha de sala da peça “Aqui, onde acaba a estrada”, levada à cena pela Escola da Noite.

Assisti a peça em Évora e recordei a função do teatro: alertar-nos para o poder da indignação individual e colectiva, num tempo de banalização do cruel e abjecto.

Devemos isso aos nossos filhos.


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Baixas paixões

No livro de Javier Marías, Berta Isla, a protagonista termina com uma citação de Dickens:

“qualquer criatura humana está destinada a representar um profundo segredo e mistério para todas as outras”. No entanto, “temos muitas pretensões: pretendemos decifrar as pessoas, sobretudo quem dorme e respira junto à nossa almofada”.

Estas são considerações tão inquietantes quanto fascinantes.

É muito mais confortável cristalizarmos um esboço de quem nos rodeia e criarmos uma narrativa (só nossa) que nos permite organizar o círculo social. Ficamos cómodos, arrumados e seguros, mas numa ficção.

É corrente esta tendência falaciosa, a nível pessoal, mas igualmente no âmbito social.

A verdade não tem importância, vendem-nos, diariamente, narrativas e nós já nem sabemos onde começaram as insinuações e suposições que nos encaminharam para uma historieta com “os bons” e “os maus”: quanto mais simples e polarizada for a acção, melhor para as massas.

É um terreno garantido, eficaz, facilmente comercializável e lucrativo, e assim se segue sem se procurar contraditório.

Vemos esse sensacionalismo vazio até nas manchetes dos nossos melhores jornais, sobretudo na sua versão digital e instagramável. O mercado do “clique” assim o obriga.

Numa sociedade polarizada, é fácil acirrar frentes e há quem não perca a oportunidade de ganhar com isso.

Na entrevista ao Expresso, um jornal de referência mas que também ganharia se revisse a sua conta de Instagram, reposta aquando da morte de Javier Marías, o escritor tenta explicar alguns retrocessos civilizacionais que observamos pela Europa.

[…] Como lê a ascensão da extrema direita e dos populismos?

É muito preocupante e perigosa. E tem a ver com o ressentimento latente na maior parte das pessoas. Algumas mais, outras menos, todas estão insatisfeitas ou invejam algo, sentem que o seu trabalho não foi suficientemente reconhecido ou veem que os outros vivem melhor. Isso nem sempre domina a personalidade, mas em certos momentos pode dominar. E quando há políticos que avalizam ou atiçam o ressentimento, ele salta facilmente. Ora, se este se tornar predominante nas relações humanas, o perigo é imenso, em qualquer época e lugar. No outro dia, li um artigo de uma brasileira que contava como, desde a vitória de Jair Bolsonaro, as pessoas se comportam como se tivessem carta branca. O que dá medo não é só este indivíduo que foi eleito, são os 56% dos votos que o elegeram. Os homossexuais e os negros estão a ser abertamente ameaçados. Isto leva a pensar que as pessoas, no momento em que veem legitimadas as suas paixões mais baixas, sentem-se no direito de atacar, insultar e ameaçar. De não esconder essas baixas paixões.

“Baixas paixões” é uma expressão dura.

É muito antiga. E podemos voltar a Shakespeare: basta que um Iago te segrede ao ouvido (ou com um megafone) as razões para alimentares o ressentimento, para que este apareça. É um sentimento muito fácil de criar — e é o que, em grande medida, ocorreu na Guerra Civil Espanhola. Os meus pais viveram-na aos 20 e poucos anos, e ouvi-os contar muitas histórias deste tipo. Além das questões políticas e ideológicas, foi como abrir a caixa dos trovões e dar licença às pessoas para cobrarem as suas vinganças.

(“Baixas paixões” é uma expressão bíblica retomada por escritores como Shakespeare; de todas elas, para este escritor, o medo era a mais aberrante. Na mitologia, surge a figura de Baco, como agregador de todas as “paixões baixas”. Tal como Javier Marías, preocupa-me muito o discurso de figuras com responsabilidade política que legitimam o assumir, sem pudor, das “paixões baixas”. Noutra acepção, as paixões carnais, com altos e baixos, são as únicas saudáveis.)

A fotografia é da dupla Agnes Kulesza e Lukas Pik.


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Calendário do Advento

O Calendário do Advento que interessa é oferecido por Anabela Mota Ribeiro.

“Advento significa chegada. Essa chegada pressupõe uma espera e é uma promessa.

O Calendário do Advento anuncia, dia a dia, o aparecimento de um ser, de algo que se inicia.

Ou seja, uma vida nova, um nascer de novo.”

Gosto de recomeços (não tanto de balanços) e o meu recomeço, por excelência, começa agora e prolonga-se por Janeiro, o mês de Jano, o deus de todos os princípios.

Aldina Duarte é a primeira entrevistada de Anabela Mota Ribeira e eu guardo para este novo ciclo algumas frases da sua autoria, acerca do maior exemplo de resistência e rebeldia da cultura ocidental, Jesus.

Que ideia revolucionária essa de olhar todos os seres humanos como iguais e dignos de bondade e compaixão!

2000 anos depois, ainda é extraordinária, mesmo dentro da cultura europeia!

Ser-se de esquerda é parecido com ser-se cristão. 

Eu não sou católica, mas sou devota do cristianismo.

Adoro toda a história de Jesus. 

E acho que se se partir do Amor, vai-se sempre num caminho bom.”

Sucedem-se as entrevistas diárias, neste Calendário do Advento, com testemunhos e relatos de outros Natais, alguns mais mitificados, outros mais reais. Misturam-se os testemunhos com as minhas memórias dessa noite de entusiasmo, lareira, luzinhas, mas também de doces e rituais.

Gostei do Natal até ser jovem adulta.

Depois, por emancipação ou desencanto, aborreci-me.

Nada é estático e, como em todas as famílias, houve perdas… Felizmente, também fomos presenteados com duas meninas que devolveram toda a ternura ao Natal.

É agora a vez destas crianças viverem o Natal mais que perfeito, talvez mais despertas do que eu para as particuaridades e reformulações familiares.

Para os adultos, talvez seja mais premente reflectir nas palavras de Aldina Duarte.

Feliz Natal!

Bruno Barbey nasceu em Marrocos, mas ficou com dupla nacionalidade: francesa e suiça.

Fotografou durante 50 anos por todos os continentes e acreditou que a fotografia é “a linguagem que pode ser compreendida no mundo inteiro”.

Esteve em Portugal nos anos 60 e 90 e fotografou, em Óbidos, estas mulheres perfumadas.


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Mulher de nuvens

Apesar de sempre ter revisitado autores clássicos, ultimamente dou por mim a procurar autores e manifestações artísticas comprometidas com o mundo atual.

Estamos a viver uma fase muito conturbada da humanidade e eu preciso de perceber como é que se mantém a Esperança em tempos negros.

É claro que a Arte não tem de falar da inflação, nem dos salários cada vez mais curtos e dos meses cada vez mais longos, não precisa de testemunhar o caso da minha vizinha que não tem como alimentar os filhos, mas nós, que vemos e vivemos tudo isso, não nos podemos transformar em animais raivosos a defender o osso; o mesmo osso com que bateremos na cabeça dos outros e, brevemente, na nossa própria cabeça, quando nos faltarem os alimentos ou a sanidade.

Ferreira Gullar e a sua fina ironia sempre me salvaram.

Procuro os poemas onde todos tenham lugar.

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão


O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Jonh Malkovich apresentou em Lisboa o espetáculo “The Infamous Ramirez Hoffman”, adaptado do livro do chileno Roberto Bolaño, A Literatura Nazi nas Américas.

O infame Hoffman tinha pretensões a artista, era criativo, tinha sentido estético, mas ignorava a ética. Mais tarde, sem surpresa, tornou-se um assassino.

Com as devidas distâncias, hoje, um artista que viva na torre de marfim, envolto na estética, desilude-me em termos éticos; assume, com o silêncio, uma ruidosa cumplicidade com o Mal.

Prefiro, sem dúvida, a frase de Lídia Jorge:

Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas.

É preciso estar com quem vive de migalhas.”


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Recuperar

Há dois anos que o meu lema de consumista em recuperação mudou:

menos compras, mais Pinterest.

No entanto, quando há uma exposição diária e não se compra roupa com a frequência de outrora, entra-se facilmente na repetição maçadora de outfits.

Sobretudo no Inverno.

Sobretudo quando se é muito friorenta.

Para uma variação cromática, já comecei a alternar o total black com o total “galão”.

Ou total capuccino, para me reconciliar com os castanhos de que ando há décadas injustamente afastada.

Estas são as botas mais cool dos últimos tempos, compradas nos saldos do ano passado.

Ando a conter-me para não prevaricar com a versão castanha.

Talvez ainda quebre a minha determinação nos saldos, se encontrar mesmo uma extravagância que valha a pena.

Ou talvez me contenha e leve a passear a minha extravagância de há dois anos.

Juntamente com o mood do último ano.

No novo ano, vou arriscar nestes olhos!

Em períodos de crise, o “efeito batom” é incontornável – um luxo pouco acessível que funciona como escape e ilumina a imagem.

Em “pendant” com a luz interior, ajuda qualquer look!

Let´s shine!


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Curadoria íntima

A minha pré adolescente borbulha autonomia e determinação, excepto à noite, antes de dormir, altura em que se permite procurar a proteção e a cumplicidade da Mãe.

Andamos há semanas acompanhadas pelo Ben e pela Rose, em grandes viagens por Minnesota, New Jersey e, por fim, numa grande aventura em Nova Iorque.

Temos viajado por espaços físicos e mentais de dois adolescentes determinados em encontrar-se a si próprios, quando os adultos mais próximos lhes falharam.

Valem-lhes outras pessoas e outros mundos.

Por esses motivos, este é um livro fantasioso, intenso mas também duro.

Rose
Desejo mais profundo de Rose

Aprendemos que, em 1869, Nova Yorque não tinha qualquer museu, ao contrário do que acontecia nas capitais da Europa ou mesmo em Filadélfia ou Chicago.

O jovem Theodore Roosevelt construiu um pequeno museu no alpendre de sua casa, onde organizava e catalogava as suas colecções; o pai de Theodore fez parte do movimento que fundou o Museu Americano de História Natural.

De facto, a maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Pretendia-se que quem os visse se maravilhasse, obviamente.

Ben, no final do século XX, construiu o seu próprio Museu das Maravilhas – ou mala das maravilhas pessoais – e lança a ideia de que qualquer um de nós pode construir o seu Armário de Maravilhas.

Ben defende que cada humano deve tornar-se curador da sua própria vida, zelando pelas suas referências e afectos, quer estas sejam físicas, quer sejam espirituais:

“Como será escolher os objectos e histórias que entrarão no nosso próprio armário?

Como é que apresentaríamos a nossa própria vida?

Talvez […] todos sejamos armários de maravilhas.”

A leitura nocturna já está no nosso armário

Ben e Rose são dois jovens surdos que enfrentam acrescidas dificuldades de comunicação, mas que conseguem estabelecer ligações fortes com os outros.

A noite no Queens Museum of Art é marcante.

Na verdade, este percurso das personagens por Nova Iorque está já registado na minha viagem de sonho.

Talvez os novos projectos sejam também uma forma de escapar ao enigma que acompanha Ben:

Estamos todos na sargeta, mas alguns de nós estão a olhar a estrelas“.

As personagens encontram as estrelas no cinema (mudo), nos museus por onde deambulam e nos segredos que desvendam na sua própria jornada.

Quanto às imagens, não ilustram a narrativa, constituem a narrativa.

Ando obsessivamente no encalço de Brian Selznick.

A edição portuguesa é da ASA.

A busca começou!

As estrelas aguardam-nos!

Nota: A maioria dos museus nasceu de pequenas (ou grandes) colecções pessoais que eram guardadas em móveis chamados Armários de Maravilhas. Em Portugal, a este acumular desordenado de objectos maravilhosos (as “naturalia” e as “mirabilia”), por aristocratas, eruditos ou clérigos, chamava-se Gabinetes de Curiosidades.