Depois de ter lido sobre a utopia de Robert Owen, em Inglaterra, fiquei muito curiosa relativamente à utopia realizada por José Ferreira Pinto Basto (Porto, 1774 – Lisboa, 1839).

Em Portugal, no século XIX, as circunstâncias históricas, políticas e económicas eram completamente diversas das inglesas. A industrialização tardou a chegar ao nosso país: a nossa actividade industrial era predominantemente tradicional (ferrarias, tecelagem de lã, saboarias, indústria de seda, olaria, ourivesaria, chapéus, tapetes), e estava inserida num quadro rural.
Na primeira metade do século XIX, destacavam-se como centros industriais apenas Lisboa, Porto… e Ílhavo! A fábrica da Vista Alegre foi fundada em 1824 e veio a tornar-se a mais importante fábrica de porcelanas da Península Ibérica.

Quem era Ferreira Pinto Basto?
Era um grande proprietário de Cabeceiras de Basto e um comerciante de relevo no Porto. Era um homem viajado e esclarecido que conhecia a realidade da sociedade inglesa, nomeadamente no que concerne ao movimento industrial, e, mais concretamente, às experiências de Robert Owen em New Lanark.
Em relação à fábrica da Vista Alegre, foi necessário construir uma povoação para servir uma fábrica numa área em que não existia população; o que comprova que “o fundador teria em mente qualquer coisa realmente grande, inovadora, diferente”.
Na verdade, o espaço físico desta povoação foi sendo organizado de uma forma que claramente se assemelhava ao modelo das aldeias cooperativas preconizadas por Robert Owen.
No centro, existia um enorme terreiro à volta do qual foram construídas as instalações fabris, as oficinas, o teatro, a casa das merendas, a escola, a casa da administração e a primeira fase das casas dos operários.
Os primeiros habitantes da povoação foram vidreiros e ceramistas contratados pela fábrica e de proveniências muito diversificadas. Embora um grande número tivesse vindo da Marinha Grande, havia também pessoas de Lisboa, Oliveira de Azeméis, Porto, Coimbra, Valença, Viseu, Ovar e Castelo Branco.

Entre 1826 e 1839, trabalhavam na fábrica entre cento e cinquenta a duzentas pessoas.
O bairro operário construído devia contar inicialmente com cerca de cinquenta casas unifamiliares. Os filhos dos trabalhadores casavam entre si, dando assim origem a uma comunidade muito especial.
“A reforçar o carácter filantrópico desta comunidade, quer Augusto, quer o seu irmão Alberto Ferreira Pinto Basto, foram padrinhos de diversas crianças, embora se fizessem representar na cerimónia. Esta família nunca deixou de figurar no cume da árvore hierárquica.”
Por outro lado, os cuidados de higiene e saúde foram uma preocupação desde a fundação.
Tentava-se evitar, a todo o custo, a propagação de doenças contagiosas, criando-se simultaneamente hábitos de higiene que melhoravam significativamente a qualidade de vida dos habitantes.
Não se pode esquecer que o século XIX foi a época das últimas grandes vagas de epidemias que dizimaram populações, sobretudo as mais desfavorecidas. A propagação era muito rápida, sobretudo por causa da mobilidade de soldados, marinheiros, feirantes e mendigos. A cólera era uma doença extremamente agressiva e devastadora, responsável por um elevado índice de mortalidade. Os seus efeitos eram potenciados pelas deficientes condições higiénicas das ruas e das casas, a utilização de água imprópria, ou a má alimentação. O mesmo sucedia relativamente à febre tifóide, à tuberculose e à varíola. A sífilis, embora muito raramente mortal, estava também muito generalizada no Portugal do século XIX. Esta doença era quase sempre associada à prostituição. Na verdade, o alcoolismo, o deficiente regime alimentar, a falta de educação física, a sífilis e a prostituição eram considerados, por muitos autores, os responsáveis pelo “definhamento da raça lusitana”.
Este contexto justificava quer as medidas de higiene quer as que visavam mudar os comportamentos. Era proibido andar descalço nas instalações da fábrica, as casas tinham de ser limpas pelo menos uma vez por semana e pintadas uma vez por ano. Era expressamente proibido ter animais em casa ou atirar lixo para as ruas. Os quintais deviam manter-se cuidados. Quanto aos comportamentos, os alcoolizados eram castigados, bem como os que “faltassem ao respeito” a uma senhora.
A qualidade da alimentação era fomentada através da cooperativa, onde se vendiam, a preços baixos, os produtos da quinta.
Ao longo dos anos, as condições de vida dos operários iam melhorando substancialmente, estando sempre muito à frente das vividas no seu tempo.
“Para distração dos habitantes, criou-se uma banda de música, também um teatro, onde representavam operários da fábrica que levaram a cena numerosas comédias e operetas, começando os principiantes por recitar poesias e monólogos.”
Outra aposta que me impressionou foi a que foi feita no âmbito da educação.
Em 1826, foi estabelecido, por José Ferreira Pinto Basto, um colégio com internato, com o objectivo de educar e formar, do ponto de vista profissional, mas onde também se ensinava a ler, escrever, aritmética, desenho, doutrina cristã e música aos aprendizes de ambos os sexos.
Na escola da Vista Alegre, era dada especial atenção ao ensino das artes decorativas – desenho, escultura e a pintura –, cultivando-se também o gosto pela música, canto e declamação.
Era ainda feito um recolhimento de órfãos. Relativamente a estes, os contratos de admissão de aprendizes referem as responsabilidades que a administração da Vista Alegre assumia com o seu sustento, bem como com a sua educação: “serem à minha custa vestidos, mandados ensinar a ler, escrever, e contar, comer, cama e isto todos os anos da sua aprendizagem” .
Convém lembrar que, em 1878, 82,4% da população mantinha-se analfabeta. Nessa altura, os alunos das escolas primárias do país, apesar de apresentarem uma proveniência social heterogénea, tinham predominância urbana e pertenciam geralmente às classes abastadas”. É neste quadro que temos de olhar a acção visionária de José Ferreira Pinto Basto!
Segundo Olga de Azevedo Almeida, “[…] a Vista Alegre pode considerar-se uma utopia realizada. Ela foi um espaço onde se conjugaram os interesses do seu mentor com uma clara melhoria de condições de vida para a totalidade dos seus habitantes. Uma solução foi encontrada e aceite por uma comunidade para problemas concretos. A Vista Alegre foi assim concebida para ser uma comunidade auto-suficiente, com uma quinta agrícola, uma cooperativa, uma corporação de bombeiros, uma cantina, uma escola, uma creche, um museu, uma equipa de futebol, uma banda de música. À semelhança de New Lanark, a Vista Alegre tornou-se um local de interesse turístico contando com cerca de 1100 visitantes em 1923.
Tinha companhia de teatro, moeda própria, uma capela, uma santa padroeira e até um exército! Não foi um sonho, nem um projecto, foi uma utopia realizada, pois resultou numa sociedade claramente melhor do que a do seu tempo.”
Esta utopia realizada impressionou-me muito.
No entanto, espanta-me o silêncio à volta de uma experiência desta dimensão no nosso país, e perturba-me como não há seguidores deste homem incrível: onde estão as pessoas capazes de conjugar o lucro com a evidente melhoria das condições de vida dos seus trabalhadores?
E, pasme-se, estamos a falar de uma iniciativa privada inovadora do século XIX, de pessoas que não deixaram de ser humanas e não deixaram de ver os outros como humanos… enquanto enriqueciam como qualquer empresário do século XXI!
Todos estes dados constam da tese de Olga Maria de Azevedo Almeida, Utopias Realizadas.
As imagens são da Vista Alegre, claro!
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