“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Meteorologia sentimental

O tempo está instável.

Quem o confirma é Jorge Sousa Braga.

Ai de mim que vou para Noroeste!

BOLETIM METEOROLÓGICO

Céu muito nublado   vento

Fraco moderado de sudoeste

Soprando forte nas terras

Altas   aguaceiros em especial

Nas regiões do Norte e Centro

E que serão de neve nos

Pontos mais altos da Serra

Da Estrela e no teu coração.

Com a alma preparada para a Primavera, surge agora este volte-face.

Já em 1984, Jorge Sousa Braga anunciou:

“Todos aqueles que nos primeiros dias de Março
perscrutavam atentamente o céu
ficaram desapontados,
este ano, as andorinhas
chegarão atrasadas
devido a uma greve dos controladores aéreos.”

Com tantas contrariedades pelo mundo e no nosso retângulo, era óbvio que uma greve, uma lei anti-imigração, ou uma bomba, impediriam as andorinhas de trazer a Primavera. Mas os poetas nunca se enganam.

Aguardo ansiosa pelas novidades de abril, previstas no poema “A greve dos controladores de voo”:

“Notícias da última hora:
depois de satisfeitas as principais reivindicações
foi levantada às dezoito horas tmg
a greve dos controladores de voo”


Elas estão a caminho!

Votos de uma Páscoa Feliz!

Fotos dos suiços Arnaud Ele e Nadia Tarra.




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A tua Ítaca

Ítaca é a terra natal de Ulisses, a ilha do herói da Odisseia de Homero.

Ítaca representa o objetivo, a motivação que o leva a viajar pelo mundo, é o lar que o espera, após a grande aventura.

Numa perspetiva universal, cada um de nós caminha para Ítaca, cada um de nós constrói essa cidade íntima, a “casa” para onde regressaremos, depois de tantos obstáculos e testes que temos de vencer na vida. O percurso que fazemos ao longo dos anos define o “lar” que nos aguarda.

Se o périplo for realizado com sabedoria, maturidade e ética, mais belo será o destino aonde regressaremos. Cicatrizes e sombras serão inevitáveis, mas a luz e a beleza dependem das nossas escolhas.

Constantine P. Cavafy orienta o nosso percurso e alerta-nos para que sigamos sem precipitações.

Quantos portos nos aguardam, quantos encontros e perfumes subtis!

ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria- nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola,

âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Conheci este poema no programa Mythos – RTP2 – do helenista José Pedro Serra.

Neste episódio, o professor explica-nos (parafraseando-o) que Ítaca, o porto seguro, não existe se não a formos construindo, resta-nos a viagem: só a jornada pode tornar-nos sábios.

Já é muitíssimo ter pensamentos elevados;

já é muitíssimo compreender que não existem Cíclopes, se os não trouxermos como o medo na alma;

já é muitíssimo permanecer com uma alma nobre.

O pior inimigo dessa aspiração – o inimigo com quem não é possível estabelecer qualquer negócio – é a banalidade, a vulgaridade. Na palavra, no gesto, nas aspirações ou na política, nada é pior do que a banalidade; é a banalidade o tentador lamaçal que tudo destrói.

Se há regime que obriga a esta grandeza é justamente o regime democrático, porque com rigor e justiça não quer que ninguém perca a viagem apenas porque não lhe foi concedido um remo.

Esta mensagem do Professor José Pedro Serra é a inspiração que me faltava para o ato eleitoral de domingo. Quanta banalidade (ou vulgaridade!) nos rodeou nas últimas semanas!

O poema é uma tradução de Jorge de Sena.

O autor, Constantine P. Cavafy (Kavafis), nasceu em Alexandria,  em 1863, e faleceu na mesma cidade, em 1933.

A fotografia é da grega Mara Lazaridou.


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O medo é um tenente que faz a ronda

O medo é a mais eficaz forma de opressão de um povo.

Tem eficiência historicamente comprovada, quer seja instigado devido a um vírus, contra um grupo étnico, uma nação, ou devido a uma ideologia política. Nasce, geralmente, de uma mentira e, como um rastilho, torna-se um facto que aterroriza e paralisa o pensamento.

Na intimidade, o meu maior medo é não viver a minha verdade em pleno. Honrarmos a nossa essência talvez seja, no fundo, a razão da nossa existência.

No programa Raízes e Frutos – RTP2, descobri o meu segundo maior receio: enfrentar o julgamento da minha filha. Numa ingenuidade desarmante, as crianças (e recém-adolescentes) questionam as nossas escolhas e percursos sem pudores, nem cinismos; são muito astutos e implacáveis, também. O entrevistado referiu exemplos tão comezinhos como ter deixado de consumir produtos que colocam em causa a sobrevivência de algumas espécies; sabia, a priori, que o filho não iria compreender que o pai contribuisse, de forma consciente, para a extinção de alguns primatas, quando a alternativa era tão simples – deixar de comprar um produto fútil.

Quem contacta com crianças sabe que eles não concebem sequer certas insanidades adultas e questionam as hipocrisias sociais que nós damos por consolidadas.

O olhar de um filho pequeno pode ser uma assustadora, mas tremendamente lúcida, “bitola ética de comportamento”.

Quanto aos medos incutidos, Natália Correia escreveu “Cântico do País Emerso” e ofereceu-nos a mais inesquecível definição de medo:

Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta…
Os revoltantes fazem as contas de somar.

Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;

Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora

Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;

Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres

E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.

Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.

E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.

Só a reação, o sentido comunitário e o ativismo constantes impedirão um povo de se transformar neste retrato de alma desleixada:

Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;”

O embarque é agora!

Mia Tomé e Mário George Cabral musicaram este poema.

O retrato dos corpos flutuantes é da pintora Calida Rawles.