“Le souvenir est le parfum de l´âme” – (George Sand).


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Consolação

Na série de entrevistas “Os Filhos da Madrugada”, de Anabela Mota Ribeiro, Tiago Rodrigues, diretor do Teatro Nacional D.Maria II, proporcionou-me 20 minutos valiosos.

A propósito do título do seu espetáculo “By Heart”, discorre sobre a importância de decorarmos poemas ou textos. Recorre ao étimo latino da palavra decorar (cor, cordis: coração; ou seja, guardar palavras no coração) e explica que a memória pode ser o único gesto de resistência contra o totalitalismo político ou contra o totalitarismo humano. A este último nenhum humano pode fugir; ou não estivéssemos a falar da doença e da morte.

Nesse sentido, decorar um poema poderá ser o “nosso património, a nossa consolação”, a única “garantia de civilização mesmo nos tempos mais bárbaros e desolados”.

No site do Teatro Nacional D. Maria, li a seguinte citação de George Steiner:

“Assim que 10 pessoas sabem um poema de cor, não há nada que a KGB, a CIA ou a Gestapo possam fazer. Esse poema vai sobreviver”. Em última análise, By Heart é uma recruta para a resistência que só termina quando os 10 guerrilheiros souberem o poema de cor.

Acrescenta Tiago Rodrigues que recitar um verso poderá ser mesmo a nossa melhor despedida da vida.

Sempre me preocupei com a ideia de chegar ao fim e pensar: foi só isto?

Ando há anos a querer viver com vontade, adrenalina, tragos e fulgor.

No entanto, ultimamente tento filtrar a vida de modo a coar o sofrimento porque, na minha ânsia de viver, a dor é um contratempo incómodo.

Continuo neste precário equilíbrio entre entregar/ proteger o coração.

Viver com o coração encouraçado preserva-nos, mas mantém-nos aquém.

Os poemas de Cláudia R. Sampaio são sempre transformadores.

Epitáfio de Domingo

Se eu desaparecer hoje
E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado
a escrever desde a ponta da língua
à légua mais distante da minha vida,
diz que compreendi.
Diz que sei que nada está onde é certo estar
Que o amor súbito é a escada para o entendimento

Diz que fui ar azul sobre campos de secura
estrada recta ao infinito,
um acidente ao longe
Que provei toda a sede quando engoli os homens
Que queimei alegremente no ácido das palavras
Que tombei em ricochete para que me vissem
e que, quando me viram, me ergui animal

Diz que me viste nua, sempre
Que corri por hospícios de olhos fechados
e a boca às avessas
Que vivi mais ao alto do que em mundo plano
e fui honesta na minha rente loucura

Diz que nunca esqueci a subida a um plátano
Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu, no de ninguém
Que fui o halo frio que preenchi com esta pena
pela minha ausência
E que tudo o que disse foi com silêncio

Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,
Que o teu corpo me serviu de andar às pernas asmáticas
Que te agradeço ter-te oferecido lírios
Que me reduziste o nojo da espécie
Diz que eu fui eu

Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:
– quanto em mim fui que não vivi
quanto em ti é que fui eu?

Mas não te preocupes, não desapareço hoje
Quando me conheceste já eu não existia
e tu sabes
que essas saudades que vais tendo
são as minhas.

Imagem: IGNANT.