Apesar de sempre ter revisitado autores clássicos, ultimamente dou por mim a procurar autores e manifestações artísticas comprometidas com o mundo atual.
Estamos a viver uma fase muito conturbada da humanidade e eu preciso de perceber como é que se mantém a Esperança em tempos negros.
É claro que a Arte não tem de falar da inflação, nem dos salários cada vez mais curtos e dos meses cada vez mais longos, não precisa de testemunhar o caso da minha vizinha que não tem como alimentar os filhos, mas nós, que vemos e vivemos tudo isso, não nos podemos transformar em animais raivosos a defender o osso; o mesmo osso com que bateremos na cabeça dos outros e, brevemente, na nossa própria cabeça, quando nos faltarem os alimentos ou a sanidade.
Ferreira Gullar e a sua fina ironia sempre me salvaram.

Procuro os poemas onde todos tenham lugar.
Não há Vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Jonh Malkovich apresentou em Lisboa o espetáculo “The Infamous Ramirez Hoffman”, adaptado do livro do chileno Roberto Bolaño, A Literatura Nazi nas Américas.
O infame Hoffman tinha pretensões a artista, era criativo, tinha sentido estético, mas ignorava a ética. Mais tarde, sem surpresa, tornou-se um assassino.
Com as devidas distâncias, hoje, um artista que viva na torre de marfim, envolto na estética, desilude-me em termos éticos; assume, com o silêncio, uma ruidosa cumplicidade com o Mal.
Prefiro, sem dúvida, a frase de Lídia Jorge:
Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas.
É preciso estar com quem vive de migalhas.”
18 de Janeiro de 2023 às 12:48
Respirei fundo ao ler-te porque esses tempos sombrios estão realmente roubando o ar. Fazia tempo que não lia Ferreira Gullar, nunca tive uma relação próxima com ele. lembro do poema Felicidade, lido anos atrás. Acho que foi o primeiro dele. E fiz um exercício mental de pensar na palavra que nunca foi para mim. Eu sempre achei felicidade um produto caro, por causa da maneira que as pessoas falavam e ainda falam. Eu que era mais melancólica, incomodava. Agora que dou risada, incomodo. rs
18 de Janeiro de 2023 às 19:22
Tempos sombrios, mesmo!
Mais vale incomodar com risadas, mas pessoalmente sou mais do team da melancolia!